domingo, 29 de março de 2020

Bolsonaro está suicidando a sociedade

Presidente criou um paradoxo: aposta que o número de mortos não será tão alto quanto se teme, mas faz tudo para que seja

“Van Gogh – O suicida da sociedade” (ou “O suicidado pela sociedade”, como aparece, belamente, em várias edições) é o título de um livro de Antonin Artaud (1896-1948). O escritor francês defende que o pintor holandês não provocou a própria morte, mas foi levado a ela pela incompreensão de seu médico e de todos à volta. Ele próprio, Artaud, passou muitos anos em hospitais psiquiátricos, como o de Rodez, onde recebeu tratamentos de eletrochoque.

Jair Bolsonaro, que prefere os que dão eletrochoques aos que recebem, faz lembrar o título de Artaud, mas pelo avesso. Com seu empenho para que pessoas violem a quarentena e circulem pelas ruas, está pondo vidas em risco. Quer que a sociedade se suicide.

Suas frases não têm qualquer amparo factual e científico. Disse que o brasileiro entra “no esgoto” e “não acontece nada com ele”. Não há coleta de esgoto para 48% da população. Água tratada não chega a 35 milhões de pessoas. Elas ficam doentes e morrem por causa disso.

Propagandeia o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como panaceia. Em artigo publicado no sábado 28 no jornal O Globo, três cientistas explicam que foram feitos apenas dois estudos sobre o uso desses antivirais no combate à Covid-19: um, na França, apresentou falhas graves, inclusive éticas; o outro, na China, mostrou que não houve diferença entre tomar e não tomar a medicação.

Em vários momentos, fica difícil saber onde acaba a ignorância de Bolsonaro e começa a má-fé. Afirmar que só idosos devem ficar em casa significa desconhecer (ou omitir) que crianças, jovens e adultos podem voltar da rua e transmitir os vírus para os mais velhos. Mais: até o momento, a média de idade dos pacientes em estado grave no país está entre 47 e 50 anos.

E, como sabemos, a Covid-19 não é uma “gripezinha”. Já são mais de 27 mil mortos no mundo. Só na Espanha, cinco mil. Na Itália, dez mil. O prefeito de Milão, Giuseppe Sala, apoiou em fevereiro a campanha “Milão não para”, semelhante à lançada por Bolsonaro, “O Brasil não pode parar”. Nesta sexta 27, Sala admitiu que estava “provavelmente errado”. A região da Lombardia, onde fica Milão, tem mais de cinco mil mortos.

Os mais benevolentes ressaltam que o presidente está preocupado com a economia e com sua reeleição no distante 2022. Antes desses dados objetivos, vem outro: Bolsonaro é um caso psiquiátrico. Não com o brilho de Van Gogh e Artaud, infelizmente. A paranoia pode ser semelhante, mas nele há traços de psicopatia. O mundo inteiro está errado, apenas ele está certo.

Sua marca é o ódio à vida alheia. Quase foi expulso do Exército por planejar jogar bombas para protestar contra os baixos soldos. Um “mau militar”, como resumiu o ex-presidente Ernesto Geisel. Sempre defendeu a tortura, o uso disseminado de armas, a invasão de terras por garimpeiros e grileiros, o assassinato de “bandidos” – os outros, não os milicianos com quem sua família mantém estreitas relações.

A morte é o seu brasão. Dedica-se agora a empurrar para ela parte do país que deveria governar. Os afortunados o apoiam em carreatas, confinados em seus utilitários, em cenas de obscena pusilanimidade. Os mais pobres, os autônomos ou os pequenos comerciantes, sem alternativas, podem ter na mensagem irresponsável do presidente um estímulo para o retorno à “normalidade” – palavra que, dita por Bolsonaro, ganha sentido inverso.

Ao minimizar a gravidade da pandemia, com sua ojeriza à ciência e a todas as formas de conhecimento, o presidente criou um paradoxo sombrio: aposta que o número de mortos não será tão alto quanto se teme, mas faz tudo para que seja. Se a aposta der errado, não será caso de impeachment, mas de cadeia. Talvez como crime contra a humanidade, essa entidade que ele tanto despreza.

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