quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Eleições mostram algum arrefecimento do surto destrutivo bolsonarista

Marcelo Coelho 

Volta aos políticos 'normais' traz grande alívio, mas o 'normal' vai precisar de muito conserto

Costumo ser muito ruim de previsões políticas e cheguei a acreditar nestes últimos dias que Celso Russomanno iria ao segundo turno. Como assim?

Acho que ainda estava traumatizado com a vitória de Bolsonaro em 2018. Tudo à minha volta parecia ter se deslocado tão decididamente para a direita, que nem nas pesquisas eu estava acreditando mais.

Afinal, Donald Trump se mostrara um adversário mais difícil de derrotar do que indicavam os levantamentos de opinião. No Brasil, o fato de Bolsonaro ainda ter adeptos me parece tão bizarro, que intimamente já estava preparado para tudo: Russomanno, Crivella, o que quiserem inventar.

Não foi assim. A candidatura Russomanno seguiu o padrão das eleições anteriores: um favoritismo inicial que se desfaz com a chegada do horário eleitoral gratuito.

Entre as minhas previsões equivocadas, estava a de que o tempo na televisão deixaria de ter importância a partir da vitória de Bolsonaro. Certamente, as redes sociais foram importantes para Guilherme Boulos e Arthur do Val; mas de 2018 para cá parece ter havido alguma mudança.

Maior controle sobre fake news? Contas extremistas bloqueadas? Robôs menos atuantes? A força demonstrada por partidos tradicionais nestas eleições não deixa de ser, em parte, resultado dos velhos filmetes e jingles da propaganda eleitoral, com sua propensão para buscar algum consenso mais centrista.

Assim como Antonio Prata, senti um grande alívio ao ver os primeiros pronunciamentos de Joe Biden depois da vitória.

Candidato sem brilho, meio engessado e com sabor de chuchu, ele se mostrou ao menos capaz de mostrar respeito pelas pessoas e pelo cargo.

Será que Trump e Bolsonaro foram apenas um surto, um momento psiquiátrico na história, e estamos aos poucos voltando ao normal?

A questão é que foi esse mesmo "estado de coisas normal" que produziu tamanhas aberrações. O desemprego, o desmonte do Estado, o crescimento do fundamentalismo evangélico, o ressentimento racista, machista e xenófobo —tudo isso vem de antes. Não sei o quanto políticos moderados e tradicionais, como Biden, são capazes de mudar esse quadro.

Estranhamente, o que estamos vendo é a colisão entre dois surtos: o do populismo de extrema direita e o de Covid-19.

Bolsonaro e Trump poderiam ter se fortalecido na pandemia; bastava não se comportarem como Nero ou Calígula. O menosprezo pelas centenas de milhares de mortes aumentou sua rejeição —mas não tanto como seria justo esperar.

Poderíamos então pensar que, sem a Covid, Bolsonaro não teria se saído tão mal nestas eleições. Não se trata de especulação ociosa: trata-se de ver se, quando tudo "voltar ao normal", teremos de fato um declínio da extrema direita.

Sem dúvida, Bolsonaro poderá amargar as consequências de uma recessão prolongada, de uma alta da inflação, de acordos fisiológicos, de escândalos em família e das inúmeras besteiras que ainda haverá de fazer. Mas fico em dúvida quanto à possibilidade de se desfazer o clima ideológico predominante. A classe média que votou em Bolsonaro se mantém firme, acho, na ideia de que os pobres têm de se virar por própria conta e que a atuação do Estado é um entrave para o desenvolvimento.

Verdade que a resistência ao racismo e à homofobia se mostra vigorosa, e há grande futuro político para quem representa os jovens negros da periferia, vitimados pela violência policial e pelas péssimas condições de ensino.

Não me parece igualmente forte a presença de políticos que defendam abertamente o fim da hegemonia neoliberal; com Palocci e Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, Lula e Dilma seguiram a onda, que no fim os destruiu. Ciro Gomes, que concentra seu discurso na crítica ao neoliberalismo, não sei se terá tanta penetração.

E quando um dos principais adversários do bolsonarismo, hoje, é João Doria, a perspectiva de uma "virada" antidireitista continua distante.

Sim, Bolsonaro foi um surto, um ataque de fúria destrutiva e antidemocrática que tomou a maioria do eleitorado. O ódio ao PT e à esquerda arrefeceu. Guilherme Boulos e Manuela d'Ávila mostram força.

Mas os majores, os capitães e os delegados que se elegem vereadores por todos os cantos do país, por partidos tradicionais ou não, mostram que o declínio de Bolsonaro não é o declínio do bolsonarismo.

Uma volta aos políticos "normais" me traz grande alívio, claro. Mas o "normal", passada a demência de Trump ou Bolsonaro, vai ainda precisar de muito conserto.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”

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