Manoel Olavo
BACURAU
Bacurau, do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, é um filme catártico. Ele expõe na tela a distopia política do Brasil de Jair Bolsonaro em forma de alegoria. Faz uma narrativa da insuportável angústia que vivemos e celebra a luta de resistência e a solidariedade popular. O filme termina com um forte grito de liberdade.
Bacurau fala do nordeste, da resistência de seu povo, e do Brasil. Mas não somente. É mais abrangente. Com suas inúmeras metáforas, o filme desperta no espectador uma reflexão sobre o mundo contemporâneo, sobre o neoliberalismo predatório, sobre a mercantilização de tudo e todos, sobre a massificação cultural, sobre a glorificação da morte, da violência, das armas, sobre a exclusão e a indiferença ao extermínio de diferentes e miseráveis, sobre a busca do gozo narcísico a qualquer preço, sobre a destruição da cultura popular, sobre o aprofundamento do abismo social e sobre o embrutecimento duma hierarquia social baseada no poder aquisitivo. Ter dinheiro significa ter poder de vida ou morte sobre gente pobre e marginalizada. E o filme fala do modo como o poder político se alia ao grande capital para levar este poder às últimas consequências, transformando-o num produto de diversão.
Bacurau é o primeiro filme brasileiro a ganhar o prêmio do júri do Festival de Cannes desde 1969, quando “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha, foi vencedor. O filme faz jus à sua premiação. Mais do que uma bela e inteligente alegoria política, Bacurau é um grande filme. É cinema em tom maior, tecnicamente impecável, com uma fotografia inquieta e surpreendente, uma direção de atores primorosa, uma fotografia criativa e um roteiro único e impactante.
O filme consegue reunir, como poucas vezes se viu, diferentes estilos de narrativa cinematográfica num todo harmônico, coerente e eletrizante. Do thriller americano ao western, dos filmes B de ficção científica aos filmes de ação, dos filmes de terror à experimentação formal do cinema novo, tudo está presente em Bacurau. E a orquestra nunca desafina.
Há um jogo metalinguístico em Bacurau. Cada cena contém uma citação ou referência que remete a outro filme, como num labirinto borgiano. Mesmo assim, Bacurau não é uma colagem. É um filme uno, vigoroso e inteligente, que agarra o espectador pela gola desde a primeira cena e não larga mais. Bacurau emociona, gera indignação, faz pensar, faz sorrir, impele a lutar, de modo natural e envolvente. Sem didatismo nem proselitismo.
Uma sensação de incômoda estranheza acompanha o espectador desde a primeira cena. É a estranheza de quem vive numa distopia política, num mundo de valores brutais e dilacerados. A estranheza hipotética dum país onde o presidente dissesse, por exemplo, que um torturador sádico e assassino é um grande herói nacional.
Bacurau é uma cidade isolada do oeste pernambucano, uma espécie de gueto onde a população é formada pelos malditos da sociedade dos homens de bem: prostitutas, gays, transexuais, bêbados, miseráveis, descendentes de índios e escravos, ladrões, traficantes, meninos de rua, artistas populares, professores (sim, no filme de Kleber Mendonça Filho os professores estão do lado dos malditos – como no Brasil de Bolsonaro). A história se passa “daqui a alguns anos”, num momento em que miséria e alta tecnologia convivem lado a lado e, aparentemente, o Brasil foi dividido entre Brasil do sul e Brasil do norte, onde fica Bacurau. A privação, a falta d´água, a destruição da educação e saúde, a violência cotidiana, a lei do mais forte, as execuções e o uso de armas de fogo pesadas estão disseminadas. Até que, por razões que só se esclarecem na metade final do filme, um dia Bacurau simplesmente desaparece do mapa. Não recebe mais sinal de internet, nem é encontrada em mapas digitais. Fica isolada. A seguir, começam a ocorrer mortes misteriosas e, aos poucos, Bacurau entende que está sob ataque duma força inimiga. Sobre isso nada mais comento, pelo perigo de incorrer no imperdoável crime de spoiler.
O que acontece em Bacurau dali por diante é uma metáfora da desumanização do mundo contemporâneo, da perda de valor da vida humana, por conta da voracidade consumista e devoradora do capital financeiro, da concentração de renda e do neoliberalismo sem ética nem fronteiras. Bacurau é uma parte do Brasil, é o próprio Brasil mas também pode ser qualquer país na periferia do capitalismo. Países cujo povo está sendo passado pelo moinho de engenho, como no poema de João Cabral de Melo Neto, onde se entra gente e sai bagaço.
Bacurau joga com a ressignificação de símbolos e de imagens. Cinema é imagem, e Kleber Mendonça Filho sabe disso muito bem. Muitas cenas do filme são citações explícitas de outros filmes. O filme começa com uma referência à cena de abertura de “Enigma de outro mundo”, de John Carpenter, quando uma força maligna vem do espaço, penetra a atmosfera terrestre e aterrissa na Terra... desta vez em Bacurau! (Talvez algo dessa natureza explique o bolsonarismo que tomou conta do país). Esta cena acontece ao som de “Objeto não identificado”, cantada por Gal Costa.
Caixões de defunto são imagens recorrentes e obsessivas durante todo o filme. A morte permeia a narrativa. Há citações de westerns famosos, como “Era uma vez no oeste” e “por um punhado de dólares”. De filmes de ação, como “Rambo” e “Mad Max”. De filmes B de ficção científica, como “The thing”, “invasors of body snachters”, “plan nine from outer space”. Há sequências que recriam situações clássicas de filmes B de terror. Há ecos de “os sete samurais”, de Akira Kurosawa, no modo pelo qual a população de Bacurau se organiza para enfrentar o inimigo. Kleber Mendonça Filho é um antropófago do século XXI. Ele devora a estética do dominador cultural e a transforma em resistência e afirmação de identidade da sua aldeia. Com uma boa dose de ironia. Como um tapa na cara do espectador.
No filme Bacurau, a grande homenagem vai para o cinema novo brasileiro, a começar da música título do filme, composta por Sérgio Ricardo, mesmo compositor da antológica trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha. A estética glauberiana é repetidamente citada. A cenário da cidade de Bacurau lembra a cidade do filme “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”. Na trilha sonora também está a música “Réquiém para Matraga”, de Geraldo Vandré, do filme “A hora e a vez de Augusto Matraga” – outra referência cujas cenas são várias vezes lembradas. Bem como o grande filme “Os Fuzis”, de Ruy Guerra.
Além de ser um devorador de referências ficcionais, Kleber Mendonça ressignifica imagens icônicas do pesadelo documental do mundo atual. No contexto da história, vemos surgir, ao inverso, o buraco onde o exército americano encontrou Saddam Hussein; a frieza de vídeo game dos assassinatos à distância da nova guerra tecnológica do exército norte-americano, que enche as telas da CNN com corpos de árabes sendo abatidos de modo asséptico; a onipresença de imagens digitais em telas, mesmo no meio da miséria de Bacurau; e por aí afora. O filme, de modo intencional, muitas vezes incorpora a estética dum vídeo game de combate.
Tudo isto acontece dentro dum inteligentíssimo jogo de inversões narrativas e reconstruções de sentido, onde o oprimido enfrenta o opressor usando suas próprias armas. O filme atinge seu ápice no espetacular uso de uma das mais conhecidas imagens da violência social da sociedade brasileira: a foto da exibição pública das cabeças cortadas do bando do cangaceiro Lampião. Em Bacurau, metáfora e realidade se entrelaçam.
Vale destacar duas participações de atores no filme: Sônia Braga, no papel duma médica alcoólatra, e de Lia de Itamaracá, em pessoa. É a partir da morte de sua personagem que a trama se desenrola.
É possível que alguns achem Bacurau um filme violento. De fato ele é. Mas há um ponto de distinção: não estamos falando da violência gratuita do cinema de ação blockbuster hollywoodiano. A violência é um componente essencial da história. Pois ela fala justamente dum mundo onde a violência impera como único fator de exercício de poder.
Também me parece que o recurso das cenas violentas e o final catártico foram escolhas conscientes de Kleber Mendonça Filho. Num país onde boa parte da população acha que bandido bom é bandido morto, num Brasil onde o homem sentado na cadeira da presidência da república prega o ódio, a intolerância e defende a tortura, num mundo onde o extermínio de populações marginalizadas e refugiados é visto com indiferença ou até como um objetivo, é preciso gritar o mais alto possível para ser ouvido. É preciso gritar bem alto para acordar todos da pasmaceira geral e mostrar que a resistência é possível e necessária. Foi o que Kleber Mendonça Filho fez com o filme Bacurau, dum modo brilhante e original.
Trata-se duma obra-prima do cinema brasileiro, feita por um cineasta que cresce e amadurece a cada nova produção. É uma honra termos um cineasta dessa categoria do nosso lado.
Viva o cinema e a cultura brasileiras!
Manoel Olavo
P.S. Numa cena do filme, um visitante do Brasil rico e branco do sul, de passagem por Bacurau, pergunta, com ar de superioridade: "quem nasce em Bacurau é o quê? Bacurauense? Bacurano?" - Um menino buchudo de cócoras responde: “quem nasce em Bacurau é gente, moça!”.
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