domingo, 1 de setembro de 2019

Fenda antiga


Luis F Verissimo

Estávamos em San Jose, Califórnia, para cobrir a Copa do Mundo de 94. A maioria, ocupada em instalar o equipamento para a cobertura e fazer um reconhecimento do local, não se deu conta do drama que estava acontecendo junto com a nossa chegada: a perseguição e a eventual captura de O.J. Simpson – certamente a pessoa mais famosa a ser acusada de um assassinato no mundo desde que levantaram a hipótese de que Jack, o Estripador poderia ser um membro da família real inglesa. Simpson era um herói para os negros, mas não necessariamente um herói do ressentimento racial. Casara com a loira que supostamente acabara de matar e transitava no mundo das celebridades brancas de Hollywood com naturalidade. Mas quando o utilitário Ford com Simpson dentro rodou pelas freeways de Los Angeles perseguido pela polícia, os negros no caminho vibravam à sua passagem e o incentivavam como se ele ainda estivesse num campo de futebol. Tudo, inclusive a tentativa de fuga, indicava que Simpson era culpado, mas o mais importante era que ali estava um afro-americano fazendo a polícia dos brancos correr atrás dele. Depois da prisão as pesquisas divergiam. A maioria dos brancos achava que Simpson era culpado, a maioria dos negros achava que não. As opiniões se dividiam ao longo da velha fenda que não tinha nada a ver com evidências e argumentos. Uma fenda que permanece apesar de todos os avanços havidos nas relações raciais americanas e de todas as conquistas dos negros. Que, ao contrário dos negros brasileiros, nunca foram anestesiados por um falso sentimento de igualdade e nunca tiveram qualquer dúvida sobre o racismo da sociedade em que vivem. O.J. Simpson acabou sendo absolvido, mas pouca gente acredita que ele era inocente dos assassinatos. Talvez tenha matado a ex-mulher e o namorado dela levado pela certeza de que sua celebridade de certa maneira o protegeria e o eximiria de suspeita.

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A celebridade tornou-se um valor independente nos Estados Unidos, o centro do seu próprio universo moral. Seu valor é definido pela cotação no mercado. Nada é tão rentável nos Estados Unidos quanto a celebridade, e tanto faz a celebridade se dever à invenção de uma nova vacina ou à castração de um marido infiel. Fizeram uma lei que proíbe as pessoas de ganhar dinheiro explorando o próprio crime em livros (“Como desmembrei mamãe”) e reportagens, mas nada impede que outras pessoas envolvidas lucrem com sua proximidade ao crime. Todos os participantes do julgamento de Simpson tornaram-se celebridades, mesmo que por pouco tempo. A promotora chegou a dar palpite sobre quem deveria interpretá-la quando fizessem o filme. E Simpson, o homem que realizara, como atleta e ator, o desejo de tantos com tanta facilidade que podia se imaginar a salvo de qualquer represália, deve ter se sentido um pouco como o Gatsby de Scott Fitzgerald, quando descobriu que a promessa americana de um continente aberto para os melhores sonhos de um homem, sem obstáculos de classe ou preconceito, era uma armadilha. A celebridade lhe garantiu uma defesa de primeira classe e a absolvição, mas a celebridade não o suspendeu acima do bem e do mal. E embora ele pensasse que tivesse atravessado a fenda para sempre, a celebridade não impediu que seu caso se transformasse, no fim, em negros contra brancos. Como sempre.

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Dos americanos que se reuniram na Filadélfia para debater a primeira Constituição democrática da história, a grande maioria era de homens de negócio, proprietários rurais e donos de escravos, o que não os impediu de escrever a “Bill of Rights”, que definia para sempre os direitos iguais de todos os cidadãos e seria a inspiração para a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem. É verdade que se passaram quase 170 anos antes que os direitos “autoevidentes” da “Bill of Rights” fossem assegurados a todos os americanos, independentemente de raça, por uma interpretação algo tardia da Suprema Corte. E que questões como o condicionamento social do direito à propriedade não foram sequer tocados na Constituição americana, cuidadosamente redigida para proteger a aristocracia rural de qualquer desafio aos seus direitos divinos. E que até hoje, embora a aristocracia rural americana tenha seguido o caminho da “landed gentry” inglesa para a irrelevância, a questão da propriedade nunca entrou no debate político dos Estados Unidos. Mas a “Bill of Rights” está lá, como uma promessa viva, mesmo descumprida.

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No final de O Grande Gatsby, Fitzgerald, no melhor texto que escreveu na vida, evoca o sonhado país inédito que se enredaria nas suas intenções e contradições. Descreve a costa leste americana, “a fronte verde e fresca do novo mundo”. Suas árvores desaparecidas “um dia tinham se oferecido com sussurros ao último e maior de todos os sonhos humanos: por um momento transitório encantado o homem deve ter prendido a respiração na presença deste continente, compelido a uma apreciação estética que ele nem compreendia ou desejava, cara a cara pela última vez na história com algo comensurável à sua capacidade de se maravilhar”. Para Fitzgerald, o “futuro orgástico” perseguido por Gatsby e as promessas da época tinham se evanescido “na vasta escuridão além da cidade, onde os campos soturnos da república se estendem sob a noite”. E o momento encantado não voltaria mais.

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