domingo, 15 de setembro de 2019

Mais angustiado que o goleiro na hora do frango

Luiz Antônio Simas

O frango, esse momento humanizador. Que coisa sublime é o frango; a antítese do homem infalível. Parabéns, Cássio. Frangaço.


Camus disse certa vez que nada o ensinou mais na vida do que a experiência de ter sido goleiro: o que eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, devo ao futebol. Vladimir Nabokov, definiu o arqueiro como a águia solitária, o homem misterioso, o último defensor.

O grande Gilmar dos Santos Neves, goleiro do escrete canarinho campeão das copas do mundo de 1958 e 1962, considerava que um dos atributos para a formação de um bom goleiro era tomar pelo menos um frango inacreditável, de deixar as penosas soltas no ar por um bom tempo.

Marcos Carneiro de Mendonça,que defendeu o Fluminense e foi o primeiro arqueiro da seleção brasileira – campeão dos Sul-Americanos de 19 e 22 – se gabou durante anos de nunca ter falhado. Um dia, feito filósofo cartesiano na grande área do improvável, experimentou o frango.

Marcos acreditava numa tal de teoria da cobertura dos ângulos, receita infalível para evitar gols. Com toda a teoria a lhe garantir a segurança debaixo da baliza, foi traído pela soberba em um jogo entre o Fluminense e o Vila Isabel.

Em certa altura da peleja, que ia morna, o zagueiro Chico Netto atrasou a bola; o keeper se abaixou desatento e deixou a criança passar por entre seus dedos. Foi o gol que deu a vitória ao Vila e impediu o tricolor de ganhar o título de 1918 invicto.

Waldir Peres tomou um frango de tragédia grega na Copa do Mundo de 1982, na vitória do Brasil contra a União Soviética. Um meia atacante soviético arriscou um chute da intermediária. Peteleco inofensivo.

Waldir preparou-se para a defesa com a confiança de um jovem operador do mercado financeiro. Se esqueceu apenas da bola, que passou caprichosa, feito a mulher faceira e inatingível, ao lado do seu corpo. Mais do que um frango, uma granja inteira.

E o que dizer de Moacir Barbosa, o homem mais injustiçado desse país? Barbosa, gigante, está na história como o frangueiro do frango que nem frango foi. Condenado à pena de vida, viu o mundo ignorar suas defesas milagrosas e lembrar apenas do gol de duzentos mil silêncios.

Eu digo que o frango é a redenção do futebol e a metáfora mais poderosa das coisas da vida.É a antítese do "sou foda", que tantos boleiros andam a vociferar na comemoração de um gol.É a mais acabada demonstração de que o homem pode falhar sob o peso desgastante da batalha.

O frango é a prova de que debaixo das traves não está a máquina, mas o homem humano, aquele da travessia, que não sabe bem se os deuses e os diabos ouviram seu chamado solitário na noite grande. O sertão, lugar de todos os desafios, é a pequena área.

É ele – tragédia do goleiro – a mais bela demonstração estética da fraqueza humana. Certos frangaços deveriam estar expostos em fotos, vídeos e pinturas; nos museus, praças e ruas, a nos lembrar: somos falíveis, camaradas. Pedagogia de bola e gol.

Memento mori – lembra-te que és mortal. A saudação entre os trapistas cristãos deveria ser o mote maior do grande goleiro. Cada Marcos Carneiro de Mendonça, monumento ao homem infalível, deveria ter ao seu lado um zagueiro que, a cada defesa, cochicharia isso.

É redentor que cada homem, ao menos uma vez na vida, tenha a plena consciência de sua humanidade e grite aos maracanãs lotados de paixão e mundo:

— Sou um fodido!

São esses que entrarão no reino dos céus, onde certamente haverá grama verde, traves, chuteiras, luvas e bolas.

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Resumo de um texto do meu livro Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea.

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