domingo, 15 de setembro de 2019

O mundo está definitivamente estranho

Estrangulando frangos imortais
Tenho pena do fax e ódio das fôrmas de gelo de alavanca
Antonio Prata

Imagino a mesa de executivos, lá por 1940. O jovem engenheiro, grossas armações pretas, gel no cabelo, canetas no bolso da camisa, puxa teatralmente o lenço, revelando a traquitana: “Fôrma de gelo com  alavanca!”.

A invenção exala modernidade: o arrojo metálico, a leveza do alumínio, o mecanismo exposto como o motor V8 de um carro envenenado. Nunca mais terão de colocar fôrmas embaixo da torneira, 
assegura o jovem engenheiro. Nunca mais retorcerão as fôrmas de cá pra lá e de lá pra cá como quem tenta estrangular um frango imortal. 

Nunca mais golpearão a mesa da cozinha com a fôrma e verão os cubos se espalhando pelo chão —na manhã seguinte uma pequena poça sob a geladeira revela os restos de um último cadáver. 
Ilustração de Adams Carvalho para coluna de Antonio Prata

Penso na vida do jovem engenheiro depois daquela reunião. Deve ter recebido uma promoção. Deve ter se casado com uma Betty Draper ou Wilma Flintstone.


Durante meses, talvez anos, devem ter apontado para ele em lojas de departamento e eventos sociais: “O de óculos preto, perto da pilastra. Inventou a fôrma com alavanca. Diz que tem três barcos, na Califórnia. Três!”.

Não sei quanto tempo durou a glória do inventor, mas quando eu dei por mim (e pelo mundo), em algum momento da década de 80, as fôrmas com alavanca já eram objetos decadentes e semi-aposentados no fundo do congelador, parcialmente cobertos por nevascas de diferentes eras glaciais; as alavancas tortas ou quebradas, as divisórias entre cada cubo tronchas como persianas de uma casa abandonada.

Parecia uma grande ideia a fôrma com alavanca. Parecia.
O fax também surgiu como uma vedete da disrupção. Em ordem crescente, os maiores assombros dos meus primeiros anos de vida: a figurinha metálica do Iron Maiden no álbum “Rock Stamp”, o E.T. voando de bicicleta na tela do Cine Lumière, as estrelas fosforescentes no teto do quarto do Felipe Arruda, o fax botando pra fora sua língua de papel. 

De acordo com “De volta para o futuro 2” (1989), no distante ano de 2015 toda a comunicação humana seria por fax. Teríamos faxes na sala, na cozinha, no lavabo. É por fax que Marty McFly é friamente demitido pelo chefe. Ou era o filho do McFly? Não lembro, aquele futuro já está tão no passado quanto os aparelhos de fax e as fôrmas de alavanca. Mamutes encalhados no permafrost dos socavões.

Não, percebo que misturo alhos com bugalhos. A fôrma de alavanca morreu por incompetência, o fax por inadaptação. Ele era o ápice do mundo do papel no momento em que o mundo foi dominado pelas telas.

Neste sentido, o fax e “De volta para o futuro 2” se assemelham: são projeções de um futuro que iluminam o passado. Como se, no século 19, alguém imaginasse que dali a 50 anos todos andaríamos em cavalos mecânicos feitos de chumbo, mogno, cabos e roldanas.

O fax foi o último relincho do papel.
Tenho pena do fax e ódio das fôrmas de alavanca. Levou décadas para nos darmos conta de que elas faziam nossa vida pior. Como as telas, veja só. Seus criadores estão cada um com três barcos, na Califórnia, velejando com Betty Drapers e Wilmas Flintstones e nós aqui, agarrados às alavanquinhas de likes e posts e retuítes como que a tentar esganar frangos imortais.

Desculpa. Queria falar de outro assunto que não o apocalipse global e quando vejo... É estranho. As fôrmas de alavanca eram estranhas, o fax era estranho, o mundo está definitivamente estranho e essa imagem de “estrangular frangos imortais” eu nem comento. Não sei o que concluir disso tudo. Há anos que eu não sei o que concluir disso tudo. Bom domingo. Eu acho.

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