País sempre deu certo para bandeirantes, coronéis e banqueiros, enquanto população afunda, diz autorMarcos Vinícius Almeida
Luiz Antônio Simas tem um texto brilhante sobre a trajetória do Brasil. Segundo ele, a questão não é que o país está “dando errado” agora. O Brasil sempre deu certo. Certo demais. Deu certo para bandeirantes, coronéis, latifundiários. E dá certo para os banqueiros, enquanto a maioria da população afunda.
Como mostrou o especial da Folha Desigualdade Global, apenas o Qatar —emirado árabe absoluti - sta, governado pela mesma dinastia desde meados do século 19— supera o Brasil em concentração de renda no 1% mais rico. O Brasil é um tremendo sucesso. Para quebrar essa lógica, precisa “dar errado”. Como no mapa invertido de Joaquín Torres García, virar de ponta-cabeça.
Walter Benjamin diz que a questão não é fazer a história avançar “mais depressa”, mas sim interromper a cega locomotiva do progresso. Nestas terras, progresso é sangue. Um acúmulo de catástrofes: colonização e extermínio indígena, diáspora, escravização e ditaduras nunca devidamente enterradas. Sempre retornam e contaminam o presente.
Se dois seguranças se sentem autorizados a torturar um jovem negro de 17 anos, não é só o horror da violência concreta que vem à superfície. É também uma manifestação sintomática do racismo estrutural.
A exposição “Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964”, que esteve em cartaz no Instituto Moreira Salles em São Paulo, é um dos trabalhos que ajudam a desconstruir o mito do “Brasil paz e amor”: mostra que todo levante resultou em desproporcional repressão institucional, aliada aos interesses das elites.
É um trabalho que dialoga com outros três recentes: o desfile da Mangueira, vencedor do Carnaval 2019; a série documental “Guerras do Brasil.doc”, disponível na Netflix; e a obra do artista plástico Jaime Lauriano.
Mikhail Bakhtin teorizou o Carnaval como inversão da estrutura social, através da ironia e da sátira. É assim no desfile da Mangueira: as monumentais entidades históricas (Cabral e os marechais de faixa e bigode), quando saltam dos quadros para sambar na Sapucaí, são pomposos anões.
Entre tantos elementos, o destaque é o cortejo dos bandeirantes. Quando avançam, deixam para trás um rastro de cadáveres. O ícone da bravura paulista é corroído pela imagem da caveira.
No primeiro episódio de “Guerras do Brasil.doc”, o líder indígena Ailton Krenak diz: “O Brasil é uma invenção. Ele nasce exatamente da invasão. Inicialmente pelos portugueses, depois continuada pelos holandeses, e depois continuada pelos franceses, num moto sem parar onde as invasões nunca tiveram fim. Nós estamos sendo invadidos agora”. Se pensarmos nos ataques recentes a lideranças indígenas na Amazônia, nos incêndios, esse “agora” de Krenak é um grito de socorro.
Colonialismo na América Latina e seus reflexos traumáticos orientam o trabalho do artista plástico Jaime Lauriano. Em “Brinquedo de Furar Moletom”, exposto no MAC Niterói no ano passado, Lauriano usa objetos de metal sobre um pequeno muro de tijolos coloniais: três caravelas, um tanque de guerra, um avião e 27 miniaturas de carros da polícia, construídos com restos de cartuchos usados pela PM.
Já em “Quem Não Reagiu Está Vivo”, o artista se apropria de uma declaração do ex-governador paulista Geraldo Alckmin e relê a história do Brasil de modo invertido: uma história de massacres.
“Na era das catástrofes”, afirma Márcio Seligmann-Silva, “a arte passa a ser pensada como arquivo histórico (...) inconsciente”. Ou seja, os artefatos culturais —livros, cinema etc.— são um repositório de traumas históricos que sempre retornam, são “memória do sofrimento acumulado”, mesmo quando há happy end.
O final feliz do filme “Bacurau”, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, revela o horizonte que nos esmaga.
No isolado povoado de Bacurau há um museu. “Vocês vieram visitar o museu?”, é uma pergunta constante dos moradores aos forasteiros do Sudeste. Forasteiros que se revelam traidores, preparando o extermínio turístico-esportivo que um bando de americanos aficionados por armas e diversão deseja perpetrar.
Falou-se muito em western, mas talvez uma boa referência para o filme seja “O Alvo” (1993), com um inconfundível Jean-Claude Van Damme de mullets. Dirigido por John Woo, o longa retrata um grupo de sádicos que usa mendigos e veteranos de guerra como presas de uma caçada humana. Uma diferença entre os filmes é que, em “Bacurau”, não há protagonista. Ou talvez exista um: o museu, espaço coletivo, de tempos sobrepostos, onde se honram os mortos de outrora.
O Museu Histórico de Bacurau se parece, muito, com o Museu Histórico de Canudos. Da fachada ao pequeno altar com rifles, o prédio é um arquivo de lutas ancestrais, onde cada objeto material, como diria Proust, guarda um espírito, pronto a despertar. E desperta: arranca do esquecimento a tradição dos oprimidos, no momento de um derradeiro perigo.
“Os autênticos artistas do presente”, afirma Adorno, “são aqueles em cujas obras ressoa o terror mais radical”. No nosso país de privilégios, “o terror mais radical” é que toda uma legião de oprimidos vire o mapa de cabeça para baixo. Como Joaquín Torres García. Como o povo de “Bacurau”.
Marcos Vinícius Almeida, escritor e jornalista, é mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP e autor de “Paisagem Interior” (ed. Penalux).
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