A democracia, assim como a civilização, nunca está dada
As leis dependem dos homens que as aplicam, é preciso defendê-las das forças contráriasBernardo Carvalho
Visitei o bunker há oito anos, quando morei aqui pela primeira vez. Voltei agora, para acompanhar um amigo que veio passar uma semana de férias em Berlim. A guia das onze e meia é uma menina sabida na história do edifício: “Um bunker é feito para estar debaixo da terra. Então, por que este está na superfície, exposto? E por que tem cornijas e janelas renascentistas na fachada?”.
Ela explica que as janelas são falsas e que, como as cornijas no alto do prédio e a planta baixa inspirada numa obra-prima da arquitetura renascentista – a Villa Rotonda, desenhada por Andrea Palladio, nos arredores de Vicenza –, fazem parte do plano nacional-socialista de reconstruir Berlim à imagem de Roma, e de rebatizá-la Germânia.
A apropriação espúria de formas que na origem tinham a ver com valores humanistas serve de fachada para o pior dos mundos. Com paredes de dois metros de espessura e laje de cinco, o bunker foi construído com trabalho escravo, em 1942, para ser indestrutível, invencível, eterno. E se está visível, é porque é uma provocação.
Enquanto a guia explica os planos do nazismo para a eternidade, do outro lado do mundo dois homens discutem planos mais imediatos dentro de um carro.
“Não vou sair nem pelo caralho. Tá cheio de jornalista lá fora.”
“Vai ter que sair. Que fobia de jornalista é essa agora?”
“Fobia é a tua mãe! Que é que eu digo pra eles, porra?”
“Conta uma das suas. A claque de idiotas está aí pra rir.”
“E se me perguntarem...”
“A gente combinou: diz um absurdo qualquer, o maior absurdo de todos, uma coisa que obviamente não faça sentido. Segue a tática da provocação. Deu certo até agora. Continua invertendo o jogo, repete as acusações deles, a teu favor. Acusa teus inimigos dos crimes da tua família.”
“Não sei se você notou, mas o cerco está se fechando, eles estão chegando mais perto dos fatos.”
“Quantas vezes eu vou ter que repetir que não existe fato, cada um tem o seu?! E, de mais a mais, tem gente cuidando dos fatos pra você. Ou não tem? Você só precisa inventar mentiras sobre quem te acusa de mentiroso. Insinua e xinga. Acusa de criminoso quem descobre o teu crime. Deixa os caras exaustos. Põe isso na cabeça. Não sei quem foi o apressadinho que disse que mentira tem perna curta. É porque não sabia usar, não tinha método. Eles não te escolheram? Continua surfando no oportunismo deles. Tão topando tudo. Pra eles é melhor fingir que não veem. Agora abre a porta, vai lá e diz a maior merda de todas. Basta repetir o que te consagrou. O atestado de burrice é deles, não teu. Aproveita a tua hora. Arrasa!”
Nos corredores do bunker, a guia diz que a finalidade da fachada não é esconder, mas escancarar. O disfarce é só uma perversão. O bunker foi construído na superfície. Sua visibilidade é conspícua. Se está decorado com motivos renascentistas falsos, é para inverter os sinais. O bunker é uma provocação não só aos inimigos do regime mas também aos que o apoiam. Ele é a expressão arrogante da falência dos princípios humanistas, de valores como verdade, justiça, razão e honestidade; a retórica do combate à corrupção e ao mal transformada em veículo para a instalação da barbárie.
No meio do labirinto, a guia diz que o fascismo é um buraco negro onde já não existem ideias fora do lugar (nada é o que é, tudo se explica à força). E que não há fascismo sem autoengano. A democracia, assim como a civilização, nunca está dada. As leis dependem dos homens que as aplicam. É preciso defendê-las das forças contrárias, que estão sempre à espreita, são permanentes e representadas pelos próprios homens.
Antes de sairmos, ela arremata que, por ser a consagração da licença para matar no lugar da verdade, da justiça e da razão, o fascismo também é sempre uma forma de suicídio coletivo.
Uma semana depois, do outro lado do mundo, num almoço de família, dois jovens advogados ligados aos bancos e ao mercado financeiro – gente em princípio racional, formada nas melhores universidades americanas – rebatem o primo que acaba de voltar de Berlim e de um inverno com temperaturas de até 14 graus. Dizem que, a rigor, não se pode falar em aquecimento global.
É a primeira vez que dizem isso. Tentam convencê-lo de que é uma narrativa com motivos ideológicos. Porque admitir a parte do homem no aquecimento global seria como aceitar que eles próprios tivessem votado num projeto fascista de governo, o que é impossível. Eles riem, brindam e perguntam se o primo entendeu o tamanho do absurdo.
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