José Eduardo Agualusa
Para um país que tanto se esforçou por propagar seu modelo de democracia, os EUA estão dando um tristíssimo espetáculo
Sempre que assisto a um discurso de Donald Trump recordo a expressão com que Eça de Queirós definia o idioma falado pelos norte-americanos: “algumas palavras de inglês e muita saliva”.
No momento em que escrevo estas linhas, quinta-feira, Joe Biden prepara-se para ganhar as eleições. Não é surpresa nenhuma. O que me surpreende, o que me deixa verdadeiramente inquieto e estarrecido, é que tanta gente tenha votado em Trump. Em 2016, muitos dos eleitores de Donald Trump refugiaram-se na tese de que não haviam votado nele, mas contra Hillary Clinton. Outros, mais ingénuos, afirmavam acreditar que, uma vez na Casa Branca, Trump deixaria cair a burlesca máscara cor-de-laranja com que se celebrizou enquanto comediante, e passaria a atuar como um verdadeiro estadista.
Em 2020, os largos milhões de pessoas que votaram em Donald Trump não têm já qualquer desculpa. Sabendo muito bem o que estavam fazendo, escolheram como seu representante um sujeito abertamente racista, machista, grosseiro, e com muito mais saliva do que palavras.
Estas eleições expuseram, como nunca antes, o rosto rústico, brutal, preconceituoso e misógino da maioria dos homens brancos norte-americanos.
A reação de Trump, proclamando vitória diante da derrota eminente, também não surpreende. O (ainda) presidente americano está apenas cumprindo o roteiro pirômano que tem vindo a anunciar.
Para um país apostado em liderar o “mundo ocidental” — seja lá o que isso for —, e que tanto se esforçou por propagar o seu modelo de democracia, os EUA estão dando um tristíssimo espetáculo. Será muito difícil repor a antiga imagem.
Uma recente manchete do “Le Monde” não podia ser mais explícita: “Os Estados Unidos estão se despedaçando”. Segundo o jornal francês, ao anunciar a vitória, a meio do processo de contagem de votos, Donald Trump colocou em marcha uma verdadeira “estratégia do caos”.
Ali Khamenei, o líder supremo do Irã, troçou: “Dizem que estas são as eleições mais fraudulentas da História dos EUA. E quem diz isto? O próprio presidente em funções!”
Nas redes sociais africanas também circulam inúmeras piadas. Internautas acusam Donald Trump de apropriação cultural ao recusar os resultados eleitorais, alegando uma fraude implausível: “Trump está a roubar as nossas tradições culturais”, escreveu um jornalista angolano: “julguei que líderes como Trump fossem produto exclusivo do Terceiro Mundo”. Outros sugerem que a União Africana envie rapidamente observadores, mediadores e uma força de paz para Washington, de forma a evitar que o país mergulhe de cabeça numa sangrenta guerra civil.
A piada poderia até ter alguma graça caso não estivesse tão próxima da realidade. Sempre que abre a boca, Donald Trump degrada a imagem do seu país e da própria democracia, aprofunda divisões e encoraja as milícias de extrema-direita.
A situação não seria assustadora caso Trump estivesse sozinho. Um louco isolado não é perigoso. Acontece que, como estas eleições vieram demonstrar, Trump tem milhões do lado dele. E quase todos estão armados.
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