sábado, 7 de novembro de 2020

A estratégia do caos na eleição americana

José Eduardo Agualusa

Para um país que tanto se esforçou por propagar seu modelo de democracia, os EUA estão dando um tristíssimo espetáculo

Sempre que assisto a um discurso de Donald Trump recordo a expressão com que Eça de Queirós definia o idioma falado pelos norte-americanos: “algumas palavras de inglês e muita saliva”.

No momento em que escrevo estas linhas, quinta-feira, Joe Biden prepara-se para ganhar as eleições. Não é surpresa nenhuma. O que me surpreende, o que me deixa verdadeiramente inquieto e estarrecido, é que tanta gente tenha votado em Trump. Em 2016, muitos dos eleitores de Donald Trump refugiaram-se na tese de que não haviam votado nele, mas contra Hillary Clinton. Outros, mais ingénuos, afirmavam acreditar que, uma vez na Casa Branca, Trump deixaria cair a burlesca máscara cor-de-laranja com que se celebrizou enquanto comediante, e passaria a atuar como um verdadeiro estadista.

Em 2020, os largos milhões de pessoas que votaram em Donald Trump não têm já qualquer desculpa. Sabendo muito bem o que estavam fazendo, escolheram como seu representante um sujeito abertamente racista, machista, grosseiro, e com muito mais saliva do que palavras.

Estas eleições expuseram, como nunca antes, o rosto rústico, brutal, preconceituoso e misógino da maioria dos homens brancos norte-americanos.

A reação de Trump, proclamando vitória diante da derrota eminente, também não surpreende. O (ainda) presidente americano está apenas cumprindo o roteiro pirômano que tem vindo a anunciar.

Para um país apostado em liderar o “mundo ocidental” — seja lá o que isso for —, e que tanto se esforçou por propagar o seu modelo de democracia, os EUA estão dando um tristíssimo espetáculo. Será muito difícil repor a antiga imagem.

Uma recente manchete do “Le Monde” não podia ser mais explícita: “Os Estados Unidos estão se despedaçando”. Segundo o jornal francês, ao anunciar a vitória, a meio do processo de contagem de votos, Donald Trump colocou em marcha uma verdadeira “estratégia do caos”.

Ali Khamenei, o líder supremo do Irã, troçou: “Dizem que estas são as eleições mais fraudulentas da História dos EUA. E quem diz isto? O próprio presidente em funções!”

Nas redes sociais africanas também circulam inúmeras piadas. Internautas acusam Donald Trump de apropriação cultural ao recusar os resultados eleitorais, alegando uma fraude implausível: “Trump está a roubar as nossas tradições culturais”, escreveu um jornalista angolano: “julguei que líderes como Trump fossem produto exclusivo do Terceiro Mundo”. Outros sugerem que a União Africana envie rapidamente observadores, mediadores e uma força de paz para Washington, de forma a evitar que o país mergulhe de cabeça numa sangrenta guerra civil.

A piada poderia até ter alguma graça caso não estivesse tão próxima da realidade. Sempre que abre a boca, Donald Trump degrada a imagem do seu país e da própria democracia, aprofunda divisões e encoraja as milícias de extrema-direita.

A situação não seria assustadora caso Trump estivesse sozinho. Um louco isolado não é perigoso. Acontece que, como estas eleições vieram demonstrar, Trump tem milhões do lado dele. E quase todos estão armados.



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