Uma vez levaram o Carlito, com seus seis ou sete anos de idade, para assistir a uma ópera. Ele voltou do teatro entusiasmadíssimo, impaciente para contar a cena da ópera que mais o impressionara
Carlos Eduardo Martins, o Carlito, era filho da tia Lucinda, irmã da minha mãe, e do Justino Martins. Filho único, era um pouco mais moço do que eu. Não chegamos a conviver muito, mas me lembro dele como um primo movimentado e engraçado. “Vivo” talvez fosse o adjetivo que melhor o descreveria.
Uma vez levaram o Carlito, com seus seis ou sete anos de idade, para assistir a uma ópera. Ele voltou do teatro entusiasmadíssimo, impaciente para contar a cena da ópera que mais o impressionara.
– O cara teve tanta sorte que morreu no cemitério!
Era preciso meditar um pouco – escondendo o riso – sobre o relato do Carlito. Ele tinha a sua lógica. O cara morrer no cemitério e ser enterrado ali mesmo eliminava várias etapas do ritual fúnebre, inclusive o transporte do corpo para o cemitério. Era prático, era rápido, dispensava intermediários e certamente custava menos que um enterro convencional. O Carlito estava certo. A sorte do cara!
Durante muito tempo, na nossa casa, a lógica do Carlito foi lembrada. Tudo na vida, afinal, depende do ponto de vista e, do ponto de vista de vista do morto, morrer no cemitério era um grande negócio.
O Carlito só tinha uma queixa. O cara que morria no cemitério, demonstrando grande senso de oportunidade, morria traspassado por uma espada, mas não sem antes cantar uma longa ária, prostrado no chão. E o Carlito duvidava que alguém traspassado por uma espada tivesse força, sem falar em pulmões, para cantar uma música inteira, ainda mais naquele volume. Não era lógico.
O Carlito, minha irmã Clarissa e eu, ainda crianças, resolvemos publicar um jornal para circulação interna na casa. Aliás, circulação restrita: o jornal de uma folha só era colado na parede ao lado da privada, e “saía” uma vez por semana, com comentários sobre acontecimentos domésticos e nacionais, críticas ao comportamento dos mais velhos, dicas de filmes, charges e, vez por outra, protestos contra a mesmice da comida e sugestões de menus mais criativos com variações de fast-food. O nome do jornal, O Patentino, precisava ser explicado para visitantes de fora do Estado que, por acaso, sentassem na privada sem nada para ler. Durante muito tempo, privadas importadas, suponho, da Inglaterra pelo Rio Grande do Sul traziam o número da patente do vaso, e deduziu-se que “patent” era o seu nome, de fantasia, não o seu número de registro. O Patentino não viveu o suficiente para esclarecer o próprio engano. Éramos crianças.
Lá está, no expediente: Editor responsável, eu. Secretária, Clarissa. Repórter, Carlito. Que time. O Carlito morreu num acidente de carro, no Rio, por volta dos anos 70, sem nenhuma lógica. Tinha pouco mais de trinta anos.
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