domingo, 1 de novembro de 2020

O Estado de Direita


Sobre enganos


As pessoas ouvem falar em “estado do direito”, geralmente associado à Constituição de 1988,  e, como “direito” se opõe a “errado”, acham que é coisa boa. Não necessariamente.

O que o “estado de direito” fez de mal, na prática, foi subordinar as decisões dos poderes eleitos ao arbítrio de uma corporação da bacharéis ricos, formados em escolas de ideologia empacotada e nutridos por uma estrutura judiciária que flutua, dominantemente, entre o conservador e o reacionário. Nenhum deles foi eleito, sua ascensão funcional é meritocrática – com todos os limites e desvios da meritocracia corporativa – e opaca.

É através desses bacharéis, a que se atribui ilimitado poder individual – subvertendo a própria hierarquia funcional, como no caso da Lava-Jato --, que fluiu a imposição da common law agravada pelo pragmatismo norte-americano. Rapazes concursados e confiantes na própria habilidade de ler o texto das leis e entender o que lhes dá na telha perdem o nome, e passem a ser chamados de “Justiça” quando sentenciam a exaltação ou depreciação de criaturas e instituições.

No caso do Brasil, alguns fatores agravam  essas distorções.

A partir do momento em que, com as prováveis melhores intenções, o legislador tornou a formação em Direito essencial na carreira dos policiais, as faculdades do ramo não só proliferaram (o que não falta no Brasil é polícia, sem contarmos os de uso assemelhado: forças armadas, fiscais de renda, promotorias, procuradorias etc.) como subverteram os princípios da profissão de advogado. Presunção de inocência tornou-se presunção de culpa, sempre mais aceitável pelo público educado por jornalismo vil como o do Datena, do Jornal Nacional, da Veja e outras porcarias.

Poderiam ter contado ao legislador que a mentalidade policial é exatamente o oposto aos postulados que regem o direito do cidadão; e que, como constatou Hipócrates, o pai da medicina, juntando a doença à saúde, a doença pega, e a saúde, não.

O fenômeno não é apenas brasileiro; críticos europeus o têm constatado lá, considerando os limites de poder, por exemplo, do Parlamento de Bruxelas. Reflete, por um lado, a falência da democracia concebida na Era do Iluminismo – quando se supunha que o povo escolheria refletidamente, consultando a razão, em lugar de ceder às paixões e à emoção do momento –, e, por outro, à invenção de fórmulas capazes de escamotear um novo autoritarismo global: é, hoje, na formação de militares e bacharéis, nos critérios de sua promoção e na corrupção geral das máquina de informação social (da imprensa tradicional aos grupos de WhatsApp) que se apoiam os maquinadores do poder soft nas guerras híbridas.

Temos, aqui, um presidente pornográfico assessorado por políticos picaretas, seitas fanáticas e generais absolutamente incapazes de entender qualquer coisa de geopolítica (que seria o campo de estudo deles). Se mudar o governo dos Estados Unidos, essa farsa deverá sair de cena, talvez substituída por algo menos caricato.

No entanto, no essencial, mesmo, eles não mandam nada.

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