domingo, 21 de abril de 2019

O arauto do caos é carregado nos ombros das forças da ordem


A confluência entre um capitão, um economista e um astrólogo

Bernardo Carvalho
Fica cada vez mais claro que estamos em franca regressão para uma caricatura analogista
Alguns livros são como mapas que, uma vez abertos, tornam-se indispensáveis a novas incursões pelo mundo. “Par-delà Nature et Culture” (para além de natureza e cultura, Gallimard, 2005), do antropólogo francês Philippe Descola, é um deles.

Descola divide os modos como os homens compreendem o mundo e se relacionam com o que não é humano (plantas, animais etc.) em quatro grandes sistemas ou cosmologias.

No animismo dos povos ameríndios, animais e plantas se distinguem dos humanos em sua conformação física, mas compartilham com eles a interioridade espiritual.

No totemismo dos aborígenes australianos, uma relação mítica liga os humanos, física e espiritualmente, aos animais que eles consideram ser seus totens.

O naturalismo, que surge no Ocidente no século 17 ao mesmo tempo que o sujeito da razão, é o único dos quatro sistemas a conceber uma autonomia da cultura em oposição à natureza. A distância entre humanos e não humanos permite o nascimento da ciência moderna, mas também a apropriação e a exploração progressiva da natureza como suposta fonte inesgotável de recursos.

Por fim, no analogismo, a diversidade absoluta das coisas leva a uma compreensão do mundo baseada em relações arbitrárias de analogia. É o modelo da sociedade de castas na Índia, da China confucionista e do Ocidente na Idade Média. I Ching e astrologia funcionam por analogismo, criando relações de sentido entre coisas tão díspares como o movimento dos planetas e o estado de espírito dos indivíduos. As singularidades passam a funcionar dentro de uma ordem coercitiva, geral e inescapável.

Não há como não pensar no livro de Descola diante do atual estado das coisas. Assim como o Ocidente passou de uma cosmologia fundada no analogismo para o naturalismo da modernidade, vai ficando cada vez mais claro que estamos em franca regressão rumo a uma caricatura analogista.

Afinal, de onde vêm o negacionismo e os revisionismos históricos? Como explicar que de repente o nazismo seja de esquerda e a defesa do meio ambiente só tenha a nos prejudicar? Como é possível crer que armar a população seja a solução contra a violência?

O analogismo é a única entre as quatro cosmologias que não concebe alteridade. Não há nada fora do sistema, tudo tem que fazer sentido dentro dele, por mais absurdo que seja, para que não haja contradição. É o modelo ideal para os regimes autoritários, ou para quando as coisas perdem o rumo, quando o Estado passa a assassinar os cidadãos que deveria proteger.

Uma reportagem recente do New York Times sobre um fungo resistente e assassino mostrava indiretamente, ao apontar para as consequências do abuso de antibióticos, herbicidas e pesticidas, os limites da lógica ultraliberal.

A economia moderna surgiu no mundo da razão. Confrontado com suas contradições, entretanto, o capitalismo tardio precisa se amparar numa lógica muito mais próxima do disparate analógico do que da reflexão na qual ele floresceu. É o que explica a convivência em princípio esdrúxula entre neoliberalismo e mitologias autoritárias, revisionistas e negacionistas.

O sofisma faz a analogia entre a desregulação da economia e das políticas de proteção ambiental. É preciso um modelo lógico em circuito fechado, autônomo e inescapável, que desvie as atenções e a consciência das consequências reais das ações. É o que explica a confluência em princípio improvável entre um capitão, um economista e um astrólogo num momento infeliz da nossa história. O arauto do caos é carregado nos ombros das forças da ordem.

Nesse sentido, o analogismo seria o desdobramento natural dos impasses da razão: ao mesmo tempo que o homem garante, graças à ciência, a apropriação e a exploração ilimitada da natureza, atribuindo à ciência a capacidade onipotente de encontrar soluções para tudo, é obrigado a negá-la quando ela se converte em alerta para o suicídio de sua ação.

O horror ao fantasma do marxismo, no fundo, apenas transfere para um bode expiatório imaginário a ameaça da consciência de sua própria insustentabilidade.

O sofisma neoliberal se sustenta na conivência da vítima: o próprio agente, obnubilado pelo oportunismo e pelo pragmatismo do lucro, já não se percebe algoz de si mesmo. Acredita viver num mundo à parte, imune às suas ações.

O oportunismo não é novidade. A novidade é que sejamos oportunistas contra nós mesmos. Só um novo sistema de compreensão e organização do mundo, para além da razão e do bom senso, seria capaz de explicar o absurdo que é um suicídio cometido por má-fé.

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