Não sei se os aflitos encontram conforto em ‘A peste’ ou ‘1984’. Se fosse terapeuta literário, eu aconselharia ‘O amor nos tempos do cólera’
Leio que, na Itália, a epidemia de coronavírus tem levado milhares de leitores às livrarias para comprar “A peste”, de Albert Camus. Também o “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, voltou a frequentar as tabelas dos livros mais vendidos, 25 anos após ser lançado em Lisboa.
Aconteceu algo semelhante no Japão, em 2011, logo a seguir ao acidente nuclear de Fukushima. Nos meses seguintes, os leitores japoneses redescobriram “A peste”. Outro livro que costuma ter grande procura durante crises como a atual é “1984”, de George Orwell. Não por acaso, a forma como o mundo vem reagindo à epidemia de coronavírus configura uma mistura entre “1984”, romance sobre um déspota que recorre às tecnologias mais sofisticadas para vigiar os seus cidadãos, e o livro do escritor franco-argelino, o qual, a partir do drama de uma pequena cidade argelina, Oran, tomada pela peste bubônica, reflete sobre alguns dos aspectos mais sombrios da natureza humana.
Não sei se os aflitos encontram real conforto nos títulos acima. Se algum incauto me contratasse como terapeuta literário aconselharia antes “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez, um livro fabuloso, no qual o amor pode não conseguir vencer a epidemia, mas pelo menos permite aos amantes permanecer numa quarentena infinita. Ou seja: se forem forçados a ficar de quarentena, pelo menos escolham bem a companhia.
O coronavírus, portanto, tem o seu lado positivo. Até vários lados. Com as fábricas encerradas, o ar tornou-se mais respirável em vastas zonas da China, diminuindo o número de pessoas afetadas por doenças respiratórias.
Em Portugal, a epidemia tornou-se quase sinônimo de literatura, dando um sentido literal à expressão “escritor contagioso”, no momento em que um romancista chileno, Luís Sepúlveda, foi diagnosticado com a doença. Dois dias antes de ser hospitalizado, na cidade espanhola de Gijon, onde vive, Sepúlveda estivera num famoso festival literário, o Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. A notícia provocou forte alvoroço nos meios literários. Escritores que haviam confraternizado na Póvoa com Luís Sepúlveda optaram por se isolar em casa. O romancista caboverdiano Germano Almeida, muitas vezes referenciado como o maior dos autores de língua portuguesa, foi internado num hospital da cidade do Mindelo, em Cabo Verde, logo depois que o seu avião aterrou. Temia-se que o escritor — um gigante afável, com mais de dois metros de altura —, pudesse, ao espirrar, destruir o arquipélago.
O meu editor português, Francisco José Viegas, conseguiu a proeza de ter estado na Póvoa do Varzim, na China e no norte de Itália nas últimas três semanas. Também ele está em prisão domiciliar, pondo a leitura em dia. No momento em que escrevo esta coluna, quinta-feira, Luís Sepúlveda permanece hospitalizado (faço votos para que se recupere logo). Germano Almeida, felizmente, já está em casa. Os restantes escritores, entre os quais José Luís Peixoto, João Tordo e tantos outros, aproveitam para ler e escrever. “Foi a melhor coisa que me aconteceu”, confessou-me um deles: “Posso finalmente ler e trabalhar sem que ninguém me incomode. Quando aparece alguém, eu apenas tusso.”
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