quinta-feira, 5 de março de 2020

Etimologia fake


Lendas que fazem da mitologia das palavras um campo fascinante
Sergio Rodrigues

Na semana passada falei dos etimologistas românticos, gente que aprecia tanto as palavras dotadas de origens curiosas que, julgando escasso o número de historinhas pitorescas da vida real, trata de inventar mais algumas.

Houve quem me pedisse exemplos, então vamos a eles. Convém ter em mente que as lendas etimológicas mencionadas aqui são só uma pequena amostra de um universo que aguarda estudos linguísticos mais sérios.

Não, coitado não tem nada a ver com coito. Veio do verbo arcaico “coitar”, derivado do latim vulgar “coctare”, atormentar. O coito é outra coisa, oriundo de “coire”, ir com —eufemismo sexual ainda vivo em nossa língua: “Ela vai com qualquer um”.

Desfazer esse mal-entendido tem sido mais difícil do que turbinar o PIB brasileiro. A ilação etimológica coito-coitado é fantasiosa, mas acreditar nela parece satisfazer algum anseio recôndito do público.

Algo a ver com o prazer adolescente de supor uma origem pornográfica maldita para um termo perfeitamente familiar e respeitável. Romantismo, pois é.

A produção de teses dos românticos pode não ter valor algum para a própria etimologia, mas para a mitologia das palavras é um campo de saber fascinante.

Muito tempo antes —décadas, séculos— da pandemia de fake news políticas que o ambiente de contágio máximo das redes sociais propiciou, alguns desses caôs pseudoeruditos já circulavam com sucesso.

Claro que a diferença no potencial de estrago torna incomparáveis os dois tipos de mentira. Acreditar que vacinas provocam autismo é incomparavelmente mais grave do que engolir a lenda antiga que atribui o termo larápio, de origem obscura, a um certo L.A.R. Appius, juiz romano corrupto.

Diferentes as mentiras são, mas cascata é cascata. Em algum plano, não é impossível que a popularidade de uma crendice bobinha como a que situa a origem de forró no inglês “for all” tenha aberto caminho para o kit gay.

Ou a crendice não será tão bobinha assim? Haveria implicações, digamos, cívicas na subordinação do próprio nome de uma manifestação cultural tão brasileira ao inglês? Forró é forma reduzida de forrobodó, “baile popular”, termo de origem nebulosa nascido no século 19.
Às vezes a lenda dá muita bandeira de ideológica. Como a história comprada por gente à beça, inclusive professores, de que a palavra aluno, de origem latina, queria a princípio dizer “sem luz” —motivo pelo qual deve ser evitada.

Trata-se de uma patranha que teria sido fácil evitar: bastaria ir ao dicionário. O latim “alumnus” carrega o sentido primeiro de criança de peito, e o de discípulo por extensão. Brotou do verbo “alere”, nutrir, alimentar.

Tem bastante mérito a visão pedagógica do aluno como alguém que, longe de ser um espaço vazio a ser preenchido pelo mestre, tem coisas a ensinar, além de aprender. Ninguém precisa pagar o mico de propagar um erro grosseiro para defender tal ideia.

Eu disse ali em cima que o romantismo etimológico não tem valor para a. etimologia, mas cabe uma ressalva: em determinados casos, tem sim.

Um mal-entendido pode se incorporar a uma palavra de tal forma que acabe influindo em seu desenvolvimento. Chama-se a isso etimologia popular.

O caso clássico é o que transformou o francês antigo “forest” (do latim tardio “forestis”) em floresta. O romântico compareceu imaginando que a palavra para designar bosque ou mata tivesse algo a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.

Sérgio Rodrigues
Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

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