Jayson Harsin aponta três conjuntos de questões, entrelaçados, que caracterizam o mundo da "pós-verdade".
O primeiro é epistêmico: o reconhecimento de que é impossível alcançar um fundamento último da verdade saiu das discussões da epistemologia da ciência e atingiu a consciência pública de uma maneira muito direta e pouco sofisticada.
Não por acaso, aliás. A extrema-direita percebeu que poderia fazer um bom uso desse discurso e investiu nele. É nesse sentido que, acredito, pode ser entendida de maneira produtiva a provocação de Robert Pennock, para quem "a teoria do design inteligente é o filho bastardo do fundamentalismo cristão com o pós-modernismo”.
Não se trata de reduzir a discussão sobre o pós-modernismo a uma acusação simplificadora (e falo isso da posição de alguém que é crítico à corrente). A questão é que, sobretudo após o escândalo Sokal e a agudização das "science wars", os grupos reacionários perceberam que o campo científico, pela própria complexidade de seus debates internos, estava mal posicionado para enfrentar um ataque frontal e mal intencionado como o que eles deflagraram.
O segundo é fiduciário: erodiu-se a confiança nos porta-vozes autorizados do conhecimento legítimo. A rigor, para cada um de nós, na esmagadora maioria dos casos, nunca se tratou de encontrar o fundamento de verdade dos enunciados, mas de confiar nos sistemas especializados que os produzem. Como disse Giddens quando era sociólogo, a modernidade é caracterizada por nossa confiança em "sistemas peritos".
Continuamos, ao que parece, confiando nesses sistemas para aquilo de que podemos obter confirmação imediata: entramos em aviões, embora não saibamos como eles são capazes de voar, porque a experiência nos diz que funcionam. Lemos no jornal que vai haver um concerto em determinado lugar e vamos lá assistir.
Na ausência de possibilidade de confirmação imediata, porém, a autoridade dos sistemas especializados é desafiada e surgem circuitos alternativos de produção discursiva que desprezam os mecanismos de legitimação até então vigentes. Assim, não há autoridade que possa dizer se houve tortura durante a ditadura militar, se a ação humana está provocando o aquecimento global, se houve ou não distribuição de mamadeiras de piroca.
O terceiro conjunto de problemas é ético-moral. A pós-verdade aponta para a negligência intencional das evidências factuais e para o uso deliberado do que se sabe que são mentiras.
O que torna esse nó difícil de desatar é que a dimensão ética não se refere apenas aos emissores dos discursos, mas também a seu público. As pessoas escolhem acreditar naquilo que sabem que não é verdade, graças à gratificação que o consumo daquele discurso lhes proporciona.
Pesquisas mostram que dois terços dos eleitores estadunidenses sabiam que Trump mentia, mas ainda assim ele foi eleito. Não é algo novo, mas a exacerbação de um fenômeno que foi verbalizado pela primeira vez, ainda no século XIX, por P. T. Barnum, o famoso mistificador e patrono da publicidade moderna: o público não resiste a ser enganado. Ele colabora ativamente, ele quer ser enganado.
Nesse cenário, os estudos mostram que combater a desinformação com fatos e evidências é basicamente inútil. Não há um chão comum por onde iniciar o debate e a adesão à mentira é sustentada por disposições psicológicas profundas.
Sendo assim, o que fazer? O caminho mais fácil parece ser tentar produzir um conjunto oposto de mentiras sedutoras, transformando a disputa política numa espiral de manipulação. Mas esse caminho, na verdade, está fechado.
Primeiro, porque a pós-verdade transformou a atribuição de verdade discursiva num "livre mercado" aberto aos "empreendedores" - que, como qualquer "livre mercado", é extremamente sensível à assimetria de recursos. Os donos do dinheiro partem, portanto, com grande vantagem. Por isso, como tenho dito, podemos ler a situação atual, em termos bourdieuanos, como uma ofensiva do capital econômico para subordinar ainda mais o capital cultural.
Se a batalha for posta nesta terreno, certamente iremos perder.
Depois, porque o uso da mistificação para impulsionar uma política emancipatória constitui uma contradição em termos. Quanto mais se caminha nesse direção, mais o projeto emancipatório se reduz, ele mesmo, a uma mistificação - está aí a experiência do stalinismo para provar.
O caminho da esquerda sempre foi apostar na capacidade que as pessoas têm de aprender com a experiência e a ressignificar o mundo a partir de suas vivências. Não está nada fácil, mas parece que continua tendo que ser assim.
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