domingo, 26 de julho de 2020

Bolsonaro sonha em ser um genocida; negar as evidências nos torna cúmplices de seu projeto


Bolsonaro sonha com genocídio

Não foram somente os comentários elogiosos a Adolf Hitler que atestam isso; o presidente textualmente reafirmou essa posição durante a campanha eleitoral por diversas vezes
Um dos maiores desafios do ofício do historiador é lidar com o passado. A ilusão de que é possível retornar no tempo pode produzir perigosos desvios na escrita histórica. O passado é uma criação do presente e é a partir dele que deve ser pensado. Ele não existe como fenômeno em si, ele só existe a partir de reflexão e análise e não é passível de ser visitado, revisitado ou reestabelecido.

Mas o que há, efetivamente, de perigoso em acreditar ser possível reconstruir o passado?

Ora, em primeiro lugar, a ilusão do passado como um lugar concreto pode levar a percepção do presente como um tempo degenerado. Assim, uma pretensa visita ao passado pode construir supostos diagnósticos clínicos. Uma espécie de “descoberta” do pecado original. O que teria nos levado a derrocadas, a derrotas, enfim, como se fosse possível localizar as origens de nossas “doenças” do hoje.

Se fosse possível localizar a origem da degeneração e da doença, seria possível extirpa-los, produzir uma pretensa regeneração ou cura. A dimensão clínica do tratamento do passado acaba justificando diversas formas de higiene social. Nessa percepção, há aqueles que acreditam que os problemas começaram quando da expansão de direitos a grupos antes invizibilizados. Assim, talvez bastasse, para esses, retirar os direitos desses grupos para que pudéssemos encontrar paz e harmonia do passado imaginado.

É nesse momento que o genocídio passa a ser tangível, entra na agenda tornando-se um projeto. É nesse contexto que, em conjunto com Rolando de Almeida e Omar Ribeiro da Universidade Estadual de Campinas, tenho refletido acerca da política do presidente brasileiro Jair Bolsonaro na pandemia:

Estaríamos presenciando um projeto de genocídio no Brasil?

Perspectivas conservadoras e pouco cuidadosas diriam imediatamente que não. Comparando com modelos e casos prontos de genocídios, teríamos poucas dúvidas em dizer que não seria isso o que ocorre no Brasil. Afinal, diriam eles, o genocídio armênio, o Holocausto, o genocídio em Ruanda, na antiga Iugoslávia, entre outros, não se parecem em quase nada com o que está acontecendo no país hoje.

Entretanto, da mesma forma que é arriscado imaginar ser possível revisitar o passado, há perigos em acreditar o passado no singular. Não foram, e é fundamental entender isso, as pilhas de corpos que determinaram os massacres acima citados. Não foram os campos da morte na Bósnia que caracterizaram as condições para o genocídio sérvio, ou mesmo não foram as chaminés de Auschwitz que produziram o Holocausto. O genocídio é um projeto, sua concretização é colocada à prova por processos complexos e demorados.

Como exemplos, foi o discurso de ódio, a judeus e a outros grupos, que elegeu os nazistas. Posteriormente, foi o silêncio e a indiferença dos cidadãos alemães que permitiu o genocídio dos judeus europeus. Processos similares ocorreram no genocídio armênio, o mesmo pode-se dizer sobre o massacre de tutsis em Ruanda ou mesmo com os muçulmanos bósnios na Iugoslávia. O genocida acredita que não há população civil, apenas “inimigos” e “aliados”, de modo que todo ataque contra qualquer população pode ser legítimo. A realidade é produzida por uma construção discursiva de “nós e do eles”.

No discurso genocida, o mundo somente será melhor quando os “inimigos” desaparecerem, ou seja, quando grupos inteiros voltarem a ser invisíveis. Não há, e isso é importante de notar, nenhum genocídio que não seja antecipado pela desumanização de um grupo. Quando judeus entraram em Birkenau eles já eram há muito percebidos como não humanos por nazistas e por boa parte da população alemã, quando muçulmanos foram assassinados aos milhares em Serebenica eles já haviam, antes, sido simbolicamente assassinados por seus algozes, tal qual os tutsis em Ruanda e outros grupos vítimas de extermínio e limpeza étnica .

Bolsonaro foi eleito com um discurso genocida, e isso é importante ser dito. Não foram somente os comentários elogiosos a Adolf Hitler que atestam isso. Bolsonaro textualmente reafirmou essa posição durante a campanha eleitoral por diversas vezes. Ele fez isso quando afirmou que “as minorias deveriam se adaptar ou desaparecer”, ou quando, logo antes das eleições, disse que os “vermelhinhos tinham que ir para a ponta da praia” (numa referência ao assassinato político), ou no momento que conclamou seu público a “metralhar a petralhada”.

Além disso, em seu famoso discurso da Hebraica no Rio de Janeiro, Bolsonaro desumanizou os Quilombolas (a quem ele diz serem pesados em arrobas) e condenou as populações indígenas, afirmando que “os índios não vão ter mais um centímetro de terra” se ele fosse eleito.

Ao fim e ao cabo, temos um potencial genocida presidindo o país durante a maior pandemia em 100 anos. Durante esse período, Bolsonaro parece propenso a, finalmente, concretizar seu sonho. Ao afirmar que a Covid é “apenas uma gripezinha” e que caso ele se contamine “não acontecerá nada de grave pelo seu histórico de atleta”, o presidente, em um arroubo eugênico, deixa claro que, para ele, morrerão apenas os que têm que morrer. Os fortes sobreviverão.

Na perspectiva bolsonarista, a pandemia é uma aliada e não inimiga. A doença pode, nesse sentido, ajudar a limpar, higienizar e a curar uma sociedade de fracos e desassistidos. Assim, em seus sonhos, os invisíveis poderão voltar a não mais serem vistos. Finalmente o projeto do retorno ao passado ideal se aproxima, lembrem-se que na campanha afirmava querer voltar “50 anos atrás”. Um tempo em, no Brasil, que direitos de minorias não eram sequer tangíveis.

O projeto de genocida, sonho antigo e não escondido de Bolsonaro, parece ser possível, agora mais do que nunca. Se seu discurso não for o suficientemente convincente para podermos afirmar isso, basta acionar alguns dados importantes. Por exemplo, os parcos recursos usados pelo governo no combate à epidemia (segundo o TCU foram menos de 30% do total a disposição), a invenção de drogas ineficazes para tratar o Covid-19 ou as políticas destinadas às populações indígenas, que acabam produzindo mortes e destruição.

Bolsonaro sonha em ser um genocida; negar as evidências pode nos tornar cúmplices de seu projeto. Ainda é tempo de impedi-lo.

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