quarta-feira, 22 de julho de 2020

Sabez avec quem tu parles, monsieur? O TJ-SP sabe

Ao lado do caso repulsivo, há uma instituição repulsiva que lhe hospeda
O desembargador que sabia francês andava sem máscara pelo calçadão. Exercia sua “liberdade” de infectar, a liberdade teorizada por Paulo Guedes e praticada pelo presidente. Abordado por guarda municipal que, com base em lei e decreto, solicitou uso da proteção, o desembargador recitou as virtudes do perfeito idiota brasileiro, um idiota com distinção.

Chamou o guarda de analfabeto e rasgou a multa. O guarda mais tarde replicou: “O sr. é muito mais esclarecido do que todos nós”. O desembargador empoderado assentiu: “Óbvio!” E passou a expelir grunhidos para iniciados.

Escutei um “je donne des ‘aula’” e “Sorbonne”. Luiz Felipe de Alencastro, ex-professor da Universidade de Paris-Sorbonne, também não soube traduzir. Classificou o ruído de “javanês-francês”, língua arcaica que analfabetos não compreendemos.

Desembargador Eduardo Siqueira rasga multa aplicada por estar sem máscara em praia 

Essa caricatura da persona odiosa, porém, ainda diz pouco sobre a magistocracia, fração do sistema de justiça que rejeita o Estado de Direito (aquele regime que tenta submeter autoridades públicas à lei). Para além do caso repulsivo, devemos enxergar a instituição repulsiva que lhe hospeda —o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

O TJ publicou comunicado em seu francês particular, um dialeto menos grosseiro. Disse que “não compactua com atitudes de desrespeito às leis” e “segue com rigor as orientações técnicas voltadas à preservação da saúde de todos”.

Meses atrás, o dialeto foi empregado pelo presidente do TJ numa resposta a essa coluna. O título exalava poesia: “Juiz paulista vive a virtude como dever legal”. Explicava que o Judiciário é “função que procura reduzir as diferenças”, Poder “mais próximo ao necessitado”.

Argumentava que a “magistratura bandeirante”, na sua “trincheira diuturna”, é “serva da Constituição e da lei”; que sua matéria-prima é “a fragilidade da espécie humana”, que “igualdade de tratamento é sempre de rigor”. Não admitia a “aniquilação moral de um Poder legítimo e de profissionais sérios, probos, dignos”.

A vida real, contudo, ignora abstrações. Por trás da jurispoética, o TJ é um monumento de desrespeito à lei (não só contra vulneráveis, mas também contra juízes “sérios, probos e dignos”).

O TJ precisa se fazer respeitar pelo que faz, não pelo que fala de si. Porque o que fala, nesse linguajar cafona, faz corar até as fechaduras do tribunal. Listo alguns exemplos, mas há material para um tratado da infâmia judicial.

Começo pelo massacre do Carandiru. Já se passaram 28 anos, 10 anos só de atrasos deliberados na tramitação do caso. Houve duas anulações de julgamento. Não violou só a Constituição e a lei, mas a sua própria jurisprudência. 111 mortes, nenhum condenado.

Em casos de tráfico de drogas, o TJ despreza literatura sociológica, ignora o STF e mantém classificação de crime hediondo para aprofundar o rigor da pena. É responsável pela maior taxa de encarceramento no terceiro país que mais encarcera no mundo.

A “perpetuação da espécie pode estar em risco”, disse desembargador citando “Walking Dead”. O TJ afirma que só quer “proteger a sociedade e os cidadãos de bem”. O crime organizado agradece a ajuda logística.

Por falar em ignorar órgãos do Estado, o TJ não gostou da recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça, que tenta mitigar impacto do coronavírus nas prisões. Rejeitou quase 90% dos habeas corpus de presos pertencentes a grupos de risco (idosos com hipertensão, portadores de HIV, tuberculose etc.), em sistema prisional com taxa de ocupação de 150%. “Só astronautas estão livres do coronavírus”, ponderou outro desembargador.

Podemos falar em parceria com a violência policial (e anulação de protocolos sobre bala de borracha). Podemos falar em encarceramento de mães e gestantes e da resistência a outra decisão do STF. Podemos falar em racismo e seletividade. E mal começamos.

Isso se chama corrupção magistocrática. A essa corrupção se responde com atos concretos e honestidade. Ou então com o francês grandiloquente da “corruption magistocratique”.

Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

Nenhum comentário:

Postar um comentário