A despeito da retórica vazia e algo sinuosa, o artigo de Flávio Dino acaba sendo bastante claro no que propõe:
1) Uma frente amplíssima.
2) Nela, a presença da esquerda está permitida, como o autor do texto faz questão generosamente de frisar. Mas se exige que ela faça "modulações programáticas" para alcançar o centro.
3) Feitas as tais "modulações", a esquerda torna-se virtualmente indistinguível da direita não-bolsonarista, o que permite ao governador maranhense afirmar que o que as separa são só "disputas sobre fatos pretéritos".
4) Trata-se, então, de abraçar o senso comum e deixar de lado tais disputas sobre o passado: "abrir portas e janelas para os ventos da Pátria varrerem mágoas".
5) Na prática, isso significa esquecer o golpe de 2016 e tudo o que nos trouxe até aqui.
6) Curiosamente, o artigo diz antes que "o golpe como momento solene, à moda de 1964, foi substituído por um golpismo permanente". Isso não indicaria exatamente os perigos do olvido sobre nosso passado recente? Não, porque o autor, pondo em prática o que prega, já esqueceu do golpe de 2016 e imagina uma cesura radical entre Bolsonaro e aqueles que o colocaram no poder. Golpismo é só o que Bolsonaro está fazendo. O resto ninguém deve lembrar.
7) Mandela é evocado já no título. A África do Sul pós-apartheid tem como grande, excepcional mérito ter destruído o regime do apartheid. Mas continua sendo um país pobre, extremamente desigual, violento. O preço pago pela transição foi manter a estrutura de classes intacta - apenas permeável à ascensão social de uma minoria da população negra. Parece ser a proposta do artigo para o Brasil. Mas, afinal, qual é o apartheid que nós de fato vamos destruir aqui? O texto não aponta para lugar nenhum. É nesse ponto que a retórica vaga e sinuosa de Dino se mostra mais reveladora: ela revela naquilo que oculta, pois revela quais conflitos estão sendo escamoteados.
8) Não custa lembrar, por fim, que o fiador da transição sul-africana foi um herói da envergadura de Mandela (e não cabe discutir aqui o que o levou a aceitá-la nesses termos, depois de uma vida inteira de revolucionário e socialista). O fato de que foi Mandela, e nenhum outro, que liderou a transição não é menor, não é irrelevante. Era o símbolo vivo de que as arbitrariedades legais estavam superadas. Quem seria o Mandela brasileiro? Há um nome óbvio, mas é tabu e o artigo evita cuidadosamente evocá-lo. A gloriosa jornada em defesa do Brasil que ele propõe, portanto, não apenas elude todos os conflitos reais como está pronta a se acomodar até a uma tutela expressa sobre a vigência dos direitos.
O governador do Maranhão é um dos políticos mais competentes da sua geração. Mas é - não importa quantas foices e martelos sua legenda ainda ostente - um político tradicional, pronto a se a adaptar ao jogo tal como ele lhe é apresentado.
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