sábado, 25 de julho de 2020

Imagens para o futuro


José Eduardo Agualusa

Os terríveis tempos que atravessamos ganharam esta semana mais duas imagens fortes, muito diferentes uma da outra: a primeira mostra um jovem, em Beit Awa, na Cisjordânia, que escalou a parede de um hospital até alcançar uma janela alta, e ali se sentou, para se despedir da mãe. A segunda, igualmente intensa, dá-nos a ver uma mulher nua, de costas, enfrentando policiais couraçados e armados até os dentes, durante mais uma manifestação antirracista em Portland, no Oregon.

O jovem palestino chama-se Jihad Al-Suwaiti. Sabe-se que a mãe, Rasmi, de 73 anos, faleceu poucos minutos após o filho alcançar a janela. Quanto à mulher que enfrentou as forças policiais, em Portland, os jornais norte-americanos deram-lhe um nome: Atena — a deusa grega da sabedoria, mas também da justiça e da estratégia militar.

A primeira imagem resume o desespero destes dias. Que doença é esta, que maldade é esta que impede um filho de abraçar sua mãe enquanto ela morre?

A segunda, pelo contrário, transmite uma espécie de alegria selvagem. Ali está aquela mulher, absolutamente desprotegida e, ainda assim, desafiadora e triunfante. Atena parecia já saber como tudo terminaria. Num primeiro momento, os policiais avançam. Naquele jogo, os seis ou sete homens-rinoceronte representam o passado avançando contra o futuro. Donald Trump está por ali, no coração sombrio de cada um dos policiais. Trump e a sua repugnante misoginia. Trump e o seu racismo ancestral. Trump e a sua abissal ignorância. Trump e todos os seus preconceitos arcaicos e decadentes.
NATHAN HOWARD/REUTERS
A mulher senta-se no asfalto, abre as pernas, e é então que se transforma na origem do mundo e no mundo novo que virá. Os policiais hesitam. Param. Finalmente recuam, abandonando a cena.
NATHAN HOWARD/REUTERS
No momento em que escrevo esta coluna ainda pouco se sabe sobre Atena. Talvez seja melhor não saber. As boas fotografias contam uma história. Não necessariamente a verdadeira história. Em algumas das melhores existe tanto de realidade quanto de ficção. Eventualmente, apenas ficção. É o caso, por exemplo, do famoso beijo clicado por Robert Doisneau em frente ao Hotel de Ville, em Paris, em 1950. A fotografia, publicada pela revista “Life”, para uma reportagem sobre o amor em Paris, contribuiu para consolidar a imagem romântica da capital francesa. Anos mais tarde, contudo, o próprio fotógrafo reconheceu ter encenado tudo. Os protagonistas do beijo eram, afinal, dois jovens estudantes de teatro contratados por Doisneau.
NATHAN HOWARD/REUTERS
Também as fotografias de Atena foram, muito provavelmente, encenadas. Custa a crer que a jovem se tenha despido, subitamente, de improviso, respondendo a uma misteriosa voz interior, vinda do futuro. Ainda assim, creio que continuarão a inquietar e a comover quem quer que as veja, daqui a um século, por aquilo que exprimem de revolta, de vitalidade e de certeza.

A imagem de Jihad Al-Suwaiti, na tristíssima solidão da sua janela, faz-nos querer sair já deste presente. As imagens de Atena deixam-nos com a convicção de que iremos sair; de que já começamos a sair.

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