segunda-feira, 27 de julho de 2020

Por que é improvável que Bolsonaro seja investigado pelo Tribunal Penal Internacional


Mariana Schreiber - @marischreiber
Da BBC News Brasil em Brasília

O presidente Jair Bolsonaro já é alvo de cinco representações criminais no Tribunal Penal Internacional (TPI), Corte sediada em Haia, na Holanda, que julga graves violações de direitos humanos, como genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

A mais nova queixa contra ele foi apresentada no domingo (27) pela Rede Sindical Brasileira UNISaúde, que representa mais de um milhão de profisisonais do setor no país. A organização acusa Bolsonaro de crime contra a humanidade e genocídio por sua atuação na pandemia de coronavírus, que já matou mais de 87 mil pessoas no Brasil.

Existem outras três representações com acusação semelhante apresentadas desde abril, pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, pelo PDT e por José Manoel Ferreira Gonçalves, coordenador do grupo Engenheiros pela Democracia.

A outra queixa criminal, apresentada ainda em 2019 pela Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, pede que o presidente seja investigado por "incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas", devido ao "desmantelamento" de políticas públicas de proteção a esses povos e ao meio ambiente.

A possibilidade de o presidente se tornar alvo do TPI ganhou destaque há duas semanas depois que o assunto foi mencionado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes em conversa por telefone com Bolsonaro. No entanto, juristas entrevistados pela BBC News Brasil consideram improvável que o brasileiro se torne alvo de investigação na Corte.

'Ataque sistemático'

Entrevistada pela BBC News Brasil há cerca de duas semanas, a juíza do TPI entre 2003 e 2016 Sylvia Steiner explicou que a Corte investiga crimes contra a humanidade "praticados dentro de um contexto de ataque generalizado ou sistemático contra a população civil".

Ela cita, por exemplo, o caso de Darfur, no Sudão, em que mais de 2 milhões de pessoas foram forçadas a se deslocar, sendo que 300 mil foram mortas, entre 2003 e 2008, em um conflito marcado por execuções sumárias e estupros.

Por causa desses crimes, o TPI expediu mandado de prisão por genocídio contra o ex-presidente do Sudão Omar Al Bashir. Até hoje, porém, ele não se apresentou à Corte e não pôde ser julgado.

"Uma simples política (de saúde), por mais desastrosa que seja, não necessariamente pode ser entendida como um ataque deliberado contra a população civil. É esse elemento contextual muito particular que, à primeira vista, não me parece presente nessa política desastrada que o governo (de Jair Bolsonaro) está levando adiante em relação à pandemia", afirma Steiner.

O entendimento é o mesmo do juiz criminal Marcos Zilli, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP). 

"Os poucos casos até o momento julgados envolvem crimes de guerra e crimes contra a humanidade em contextos muito diversos daquele que se desenha nas representações ofertadas (contra Bolsonaro)", ressaltou.

'Capacidade limitada'

Para Sylvia Steiner, a representação que acusa Bolsonaro de incitação ao genocídio de indígenas, teria, em tese, mais possibilidade de dar início a um investigação pela Procuradoria da Corte, do que as reclamações criminais sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia.

Mas, mesmo nesse caso, ela considera improvável que isso ocorra, já que um dos critérios para se iniciar uma investigação no TPI é que fique demonstrada incapacidade ou falta de vontade do sistema de Justiça nacional para apurar e punir eventuais crimes.

Dessa forma, nota Steiner, a Corte costuma voltar sua atenção a casos de extrema gravidade, em países com instituições de Justiça mais precárias(!!) que as brasileiras.

"Acho muito difícil que o Tribunal, com a capacidade limitada que tem, vá se ocupar dessas representações (contra Bolsonaro)", disse Steiner à BBC News Brasil.

"O Tribunal não tem condições de investigar todas as situações que ocorram no mundo inteiro. Há desastres humanitários ocorrendo em outras partes do mundo, em lugares totalmente desestruturados e, portanto, a atenção do Tribunal é última esperança de populações que estão desesperadas", reforça.

Brasil pode ser investigado em outra corte internacional

Embora considerem difícil que Bolsonaro seja investigado pelo TPI, os juristas ouvidos pela reportagem dizem que o Brasil pode vir a ser responsabilizado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela atuação do governo federal na pandemia.

Caso essa investigação seja aberta, poderia levar a julgamento e condenação do Estado brasileiro, mas não contra Bolsonaro pessoalmente.

"Essa condução desastrada, descoordenada, irresponsável dessa crise (do coronavírus) é um fator de violação massiva contra direitos fundamentais, o direito à saúde, o direito à vida. Já existe material suficiente para que se ofereça uma denúncia junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (órgão que analisa se denúncias devem ser julgadas na Corte). Disso não tenho a menor dúvida", afirma Steiner.

Contrariando evidências científicas, Bolsonaro e seu governo têm se oposto às políticas estaduais e municipais de distanciamento social.

Além disso, o Ministério da Saúde, por determinação do presidente, tem promovido o uso da cloroquina no tratamento de covid-19, apesar dos possíveis efeitos colaterais graves que a substância pode provocar e de não haver comprovação de sua eficácia contra a doença.

Representações no TPI passarão por filtro inicial

Enquanto a Corte Internacional de Justiça, conhecida como Corte de Haia, é responsável por julgar disputas entre países, o TPI é encarregado de julgar apenas indivíduos acusados de quatro crimes graves: crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra e, desde 2018, crimes de agressão — em que políticos e militares podem ser responsabilizados por invasões ou ataques de grandes proporções.

Todas as representações criminais feitas ao TPI são analisadas pela Procuradoria da Corte, órgão responsável por realizar investigações de forma independente.

As cinco ainda passarão por um filtro inicial da Procuradoria, processo que pode ser demorado dado o grande volume de representações que chegam ao órgão.

Segundo o último relatório anual da Procuradoria, divulgado em dezembro, foram apresentadas 795 reclamações criminais entre novembro de 2018 e outubro de 2019.

Esse filtro já descarta casos em que os crimes denunciados claramente não são de competência do Tribunal. Se a representação passar dessa etapa, ela ainda será submetida a um exame preliminar, em que a Procuradoria avaliará a presença dos elementos necessários à instauração de uma investigação formal, explica o professor da USP Marcos Zilli.

Nesse momento, é analisado, por exemplo, se os crimes noticiados ocorreram nos limites territoriais de um país signatário do Estatuto de Roma ou se os supostos responsáveis são cidadãos de um desses países.

Antes de abrir uma investigação, a Procuradoria também verifica a gravidade dos crimes apontados na representação e se há omissão da Justiça nacional em apurar esses delitos.

Casos se arrastam por anos

"Não há prazo estabelecido de duração e, infelizmente, em alguns casos a apuração preliminar pode levar alguns anos", ressalta Zilli.

O professor cita como exemplo o caso da Nigéria, em que desde 2010 a Procuradoria analisa se abrirá ou não uma investigação contra seita islamista Boko Haram e as forças de segurança nigerianas por crimes de guerra.

Zilli ressalta que as fases de investigação e julgamento também são demoradas.

"Os casos, é bom lembrar, são extremamente complexos. Via de regra envolvem centenas, senão milhares de documentos, assim como exigem a oitiva de dezenas de vítimas e testemunhas que, note-se, não residem no país sede do Tribunal que é a Holanda. Há, portanto, um esforço imenso de logística e de energia humana, sem contar, obviamente, o uso de recursos tecnológicos", detalha.

Desde sua criação, o TPI analisou 27 casos e emitiu 34 mandados de prisão. A partir deles,16 pessoas foram presas, três tiveram os casos encerrados após sua morte.

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