quarta-feira, 22 de julho de 2020

Chilique de desembargador contra máscara segue lógica do fanatismo liberal


Marcelo Coelho
É a própria ideia do contrato social, da igualdade perante a lei, que se anula nessa selvageria do privilégio
Talvez exista algo de positivo no caso desse desembargador fanfarrão que se recusou a ser multado em Santos (SP). Neste e em outros episódios recentes de rebeldia contra o uso da máscara cirúrgica, surge uma coisa nova no país.

Em vez de serem agentes do autoritarismo, policiais ocupam o lugar da vítima. São eles os humilhados, os desprezados, os desafiados.

O sentimento geral é de simpatia por uma polícia que, naquela ocasião, estava sendo civilizada e cuidadosa. Sente-se que, zelando pelo uso de máscaras durante uma pandemia, não fazia mais do que proteger os interesses coletivos, contra os caprichos de um bufão.

Obviamente, o bufão-mor continua impune —o impeachment do presidente vai sendo adiado, e os sintomas mais graves da Covid-19 ainda não se manifestaram em seu físico de ex-atleta.

Mas a direita delinquente que apoia Bolsonaro parece, bem ou mal, isolar-se no ridículo. E nada melhor do que ver um bolsonarista protestando contra forças policiais.

Tenho muito medo de fazer previsões —e duvido muito de quem espera “um mundo diferente” depois da Covid-19.

Dizia-se que a crise de 2008 marcava o fim do neoliberalismo, do culto ao livre mercado e à desregulamentação. A profecia não foi para valer; em pouco tempo, comentaristas, acadêmicos e autoridades voltaram a seus reflexos pavlovianos, pregando novos cortes nos gastos públicos e atribuindo ao Estado todos os males do mundo.

Sem prever mais nada, noto que a Covid pode estar mudando um pouco o domínio das convicções ultraliberais.

No mínimo, será difícil daqui por diante recusar investimentos em saúde pública. A realidade dos hospitais em pandarecos, dos enfermeiros mal pagos e os médicos à beira da exaustão se revelou até mesmo nos países do capitalismo avançado.

Políticos de extração conservadora (não me refiro aos irresponsáveis e aos loucos) parecem ter se conscientizado de que para diminuir a crise econômica é preciso mais, e não menos, Estado.

Sem enfrentar oposição ideológica de peso, o britânico Boris Johnson tem se lançado a uma verdadeira orgia de gastos estatais, culminando numa medida que parece feita de propósito para chocar a sensibilidade ortodoxa.

Ele está dando uma ajuda estatal de até £ 10 (quase R$ 70) para cada refeição que alguém queira fazer num restaurante.

Sim: você entra em qualquer bistrô ou trattoria, quantas vezes quiser, e pendura £ 10 na conta do Boris. Bebidas alcoólicas à parte, claro.

Uma hora, diria com razão qualquer economista para quem “não existe almoço grátis”, isso vai ter de acabar. Mas emergências são emergências, e o processo histórico se faz de crise em crise. Para horror da direita, o New Deal de Roosevelt deu poderes inéditos ao Estado americano no enfrentamento da grande depressão dos anos 1930.

A extrema direita brasileira se compõe, como é notório, de uma ala financeira, de uma ala criminosa e de outra fanática. Um raciocínio mágico une esquadrões da morte, especuladores do mercado e pastores adeptos de surrar os filhos.

Não é simplesmente o elogio da iniciativa privada contra o Estado. É o ódio ao Estado, com base numa verdadeira privatização da lei.

Na minha casa mando eu. Na minha saúde ninguém mexe. Com as minhas armas, mato quem quiser. Nenhuma lei trabalhista interfere na minha empresa. No meu condomínio, empregada só entra no elevador de serviço. A minha Amazônia eu queimo quando bem entender.

É a própria ideia do contrato social, da igualdade de todos perante a lei, do respeito a quem vive na mesma rua, na mesma cidade, no mesmo país, no mesmo planeta, que se anula nessa selvageria do privilégio.

Ocorre que a cidadania não deriva de contratos monetários, ou diplomas, mas da necessidade de uma existência em comum.

O direitista acha que não: para ele, quem paga mais impostos tem mais direitos.

Acha, também, que só ele paga impostos. Acha, ainda por cima, que entre os seus direitos está o de sonegar impostos. Como diria qualquer economista, a conta não fecha.

A maluquice não para por aí. O Estado é ineficiente, todos concordam. Para torná-lo mais eficiente, cortaremos seus gastos. Muito bem. Mas, com tantos cortes, o Estado vai parando de funcionar: escolas péssimas, hospitais piores, estradas intransitáveis.

O direitista vê tudo isso; o que conclui? Conclui que o Estado é ineficiente. E aí recomenda outra rodada de cortes, num processo infinito.

Seu fanatismo molda a realidade; ai de quem disser que ele não tem razão.


Marcelo Coelho

Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP

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