quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Tudo o que presta num ser humano é o que não cabe num post de Instagram

Faz meses que só temos acesso à pior versão das pessoas
São muitos os efeitos colaterais do isolamento social no século 21. Longe das pessoas, mas grudados no celular, nos distanciamos das pessoas de carne e osso, mas nos aproximamos do treino e do almoço delas. Resultado: faz meses que só temos acesso à pior versão das pessoas.

Sabemos tudo sobre todo o mundo —menos o que realmente importa. Tudo o que presta num ser humano não cabe no Instagram. Uma pessoa fazendo o bem é bonito, uma pessoa postando que fez o bem é horrível. Uma pessoa que está feliz faz o mundo mais feliz, uma pessoa postando que está feliz faz o mundo se perguntar: será que está mesmo? Precisava postar?

A pessoa que posta uma piada fez um esforço pra ser engraçada —e a graça está no diâmetro oposto do esforço. Humor é tudo aquilo que morre quando transcrito num tuíte.

Pode conferir: as vezes em que você mais riu na vida foi na vida real, com pessoas de verdade, sendo elas mesmas. Por melhor que seja o meme, mesmo que você tenha escrito infinitos HAHAHAHA em caixa alta, vamos ser sinceros: no melhor dos casos você apenas contraiu um pouco a boca e soltou ar pelo nariz. Nenhum meme nunca me fez rir tanto quanto a minha filha de dois anos.

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Digo isso com frustração, claro, afinal vivo de me esforçar pra fazer os outros rirem, e sei que nunca vou ser tão eficiente quanto o filho do leitor, a avó, o melhor amigo. O profissional, no humor, é aquele que consegue, com sucesso, imitar os amadores. O humorista passa a vida tentando reaprender a fazer tudo aquilo que ele já sabia fazer perfeitamente antes de começar a se esforçar —e precisa fazer um esforço terrível pra parecer que não está se esforçando.

Nas redes sociais, trabalhamos dia e noite pra construir nossa melhor versão possível —e resulta sempre numa pessoa muito pior do que aquela que a gente é.

Quando a pessoa posta que ganhou um prêmio é porque quer que vejam que ela ganhou um prêmio, mas ninguém vê o prêmio: vemos apenas uma pessoa postando que ganhou um prêmio, que é o contrário de uma pessoa ganhando um prêmio. A pessoa apontou pra Lua, mas só conseguimos olhar a ponta do seu dedo indicador —e tem uma verruga.

De todos os efeitos colaterais da quarentena, talvez o pior seja a mediação das redes sociais —que nos impede inclusive de ter saudades de quem a gente gosta. Acho que todo o mundo tem a impressão de que as pessoas pioraram. Mas não: o que piorou foi a imagem delas refletida nesse espelho disforme a que a gente está viciado em assistir.

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