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quarta-feira, 3 de março de 2021

O desastre sanitário poderia ser evitado se o presidente não fosse Bolsonaro...

 

Roberto Amaral

A média móvel de óbitos diários bate recordes. Estamos no limiar do escandaloso número de 260 mil mortos. Nas últimas 24 horas foram notificadas 1.726 vítimas fatais da Covid-19. O país caminha para o colapso generalizado, e os infectologistas preveem um março sombrio. Manaus poderá ter sido apenas um aviso do que nos espera nacionalmente, se o capitão continuar à solta: um cenário de guerra construído pelo encontro diabólico do crescimento da epidemia, o colapso do sistema de saúde, o fim do auxílio emergencial, o aumento do desemprego, e, potencializando todos esses fatores, a irresponsabilidade do governo federal, irresponsavelmente  protegido pela coluna castrense.

Mas o desastre sanitário poderia ter sido evitado. Se outro fosse o governo, e outra a organização político-popular.

O Brasil, pela base científica e tecnológica que logrou construir nos últimos 50 anos (o 13º país do mundo em produção científica) tinha todas as condições para liderar a fabricação de vacinas no continente, desempenhando o papel que, na região e no mundo, está sendo ocupado por China, Índia e Rússia, países aos quais logo se juntará, muito provavelmente, a solitária e solidária República de Cuba, que, em didático contraste com nossa impotência, anuncia para breve os testes clínicos de quatro vacinas produzidas nos dois grandes centros de pesquisa do país. Foram batizadas como Abdala, Mambrisa, Soberana 1 e Soberana 2,  a mais avançada, que  terá uma produção de 100 milhões de doses, e, promete o governo, será distribuída gratuitamente às populações mais pobres da África e da América Latina. Nós, porém, uma das dez maiores economias do mundo, um dos maiores e mais ricos territórios do planeta,  estamos limitados ora à importação de vacinas, ora à produção de imunizantes dependentes de insumos fornecidos  pela China ou pela Índia.

Nessa área, crucial para nossa segurança sanitária, engatinhamos. Dispomos de apenas dois centros de pesquisa e produção: a Fiocruz, no Rio de Janeiro, e o Butantan, em São Paulo. Instituições científicas respeitadas internacionalmente, mas nos últimos tempos dependentes dos humores  do governante de plantão. Ambas, nos idos de 1964, viram seus melhores cientistas serem cassados e exilados. O capitão, entusiasta do arbítrio, desafeito à ciência e à cultura, implica com ambas, centros de cérebros pensantes. A Fiocruz produz vacinas utilizando tecnologia tradicional de largo domínio, como é o caso da vacina contra a febre amarela, desenvolvida pela Fundação Rockefeller (que cedeu a tecnologia ao Brasil no final dos anos 40), ao lado de vacinas que usam biotecnologia, como a quádrupla viral, a do rotavírus e as vacinas pneumococo e meningococo conjugadas. O Butantan produz a dupla bacteriana (DT), a tríplice bacteriana (DTP) e a vacina contra hepatite B. 

A partir dos anos 80 do século passado, o Brasil desenvolveu um programa de autossuficiência em imunobiológicos que permite que cerca de 90% das 300 milhões de doses anualmente utilizadas no nosso Programa Nacional de Imunizações sejam produzidas aqui. A estratégia utilizada foi a de acordos de transferência de tecnologia entre nossos laboratórios públicos e as empresas multinacionais detentoras das patentes. Conseguimos dominar o processo de produção de algumas poucas vacinas, enquanto na maioria o processo de transferência ainda não foi concluído. De todo modo, foi essa estratégia que nos ensejou criar a base industrial a que se devem  as produções da Fiocruz e do Butantan.

No mais, não apenas no que concerne à estratégica produção de vacinas, mas para a produção de medicamentos em geral,  somos dependentes da produção de princípios ativos para a fabricação da quase totalidade  dos medicamentos utilizados no Brasil, inclusive a maioria dos genéricos, para os quais importamos moléculas ativas da Índia, da China e do Vietnã. Os muitos laboratórios estrangeiros aqui instalados ou simplesmente envasam ou embalam produtos importados de suas matrizes, ou, ainda, simplesmente manipulam os insumos necessários à sua produção. Poucos são os laboratórios nacionais sobreviventes e que tentam inovar. Tivemos mais sucesso no campo dos cosméticos do que no de medicamentos.

Este quadro não é obra do acaso. Acentuado pelo bolsonarismo, suas raízes remontam à inexistência de um projeto nacional de desenvolvimento; não sem razão os governos Collor e FHC tanto trabalharam pela destruição do Estado. 

O frustrado “caçador de marajás”, cujo governinho foi a  primeira bem sucedida investida do neoliberalismo alienígena, destruiu as bases nacionais da indústria com a abertura irresponsável e sem limites da economia, o que inviabilizou a produção nacional de princípios ativos e levou ao fechamento de dezenas de empresas.

FHC, depois de esvaziar a universidade brasileira, e proclamar “o fim da era Vargas”, adotou, atendendo a exigências  da indústria químico-farmacêutica dos EUA, a “nova lei de patentes”, com o que destruiu a possibilidade de uma indústria nacional de fármacos, baseada em moléculas isoladas da nossa biodiversidade.  E anda por aí, lépido e fagueiro, serelepe, ditando regras.  Essa lei, apesar de todos os prejuízos que vem causando à soberania do país e à  saúde da população, até hoje não foi revogada ou mesmo modificada em seus aspectos mais nocivos. O que em si é um escândalo.  Nada obstante sua vigência, porém, foi possível, no segundo governo Lula, a montagem de um projeto de ampliação da capacidade nacional de produção de tecnologias em saúde (genéricos, vacinas, biofármacos, testes de diagnóstico) e fortalecimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde, por meio de parcerias entre laboratórios públicos, empresas de capital nacional e empresas multinacionais, utilizando para isso o importante poder de compra do Estado na saúde  e o apoio estratégico da Finep e do BNDES como agências de fomento. Essa política seria destruída ainda em 2016 pelo regime sucessor do golpe de Estado que depôs a presidente Dilma Rousseff. Tudo o que vivemos, hoje, é, pois, consequência de políticas de governos antinacionais.  

A parte nesse doloroso drama reservada ao atual governo federal, qual seja, a logística de compra, distribuição e vacinação, revelou-se criminosa. O desacerto é de tal ordem que só se explica como projeto bem pensado. Completamos  oficialmente o primeiro ano da incidência da peste com 10.587 infectados (número sabidamente subnotificado) e cerca de 260 mil mortos, muitos – quantos? – vítimas do negacionismo, terraplanismo e paranoia galopante  do presidente ainda impune. O governo que nega a epidemia e sabota seu combate – entregue a um general que de nada entende – deixou de aplicar 80 bilhões de reais destinados à erradicação da epidemia. Atrasou a compra de vacinas,  atrasou-se  na compra de seringas, no fornecimento de oxigênio e anestésicos, no financiamento de UTIs, e fracassou rotundamente no planejamento da distribuição do imunizante. Em meio às críticas, tenta passar a culpa para os governadores.

Mas tudo isso ainda seria pouco para os artistas do circo dos horrores  instalado no  terceiro andar do palácio do planalto..

Com os dados disponíveis até aqui, a primeira dose das vacinas, em dois meses (janeiro e fevereiro) iniciou a imunização de  3% de nossa população, ou seja, apenas 6 milhões de brasileiras e brasileiros num universo de 210 milhões. Segundo nossos melhores infectologistas, para uma "imunização de rebanho" precisaríamos vacinar pelo menos 80 milhões  da população brasileira. No ritmo atual,  e se não houver novas interrupções no fornecimento da vacina, essa marca só será atingida em  24 meses. Este descalabro contrasta com o fato de sermos (éramos até o governo Bolsonaro) referência mundial em programas de vacinações.

O capitão, impune, continua sem coleira e de rédeas soltas, estimulando aglomerações e prescrevendo mezinhas sem serventia, como garoto-propaganda do laboratório que fabrica a cloroquina, valendo-se das redes sociais para veicular mentiras sobre o uso de máscaras, e, na contramão até de seu inepto ministério da saúde, desestimular a vacinação, único expediente conhecido pela ciência para deter a contaminação.  O auxílio emergencial acabou, e os mais pobres caminham para a miséria. O desemprego atinge números inéditos: 14 milhões segundo o IBGE, a cujo contingente se somam os miseráveis que jamais procuraram emprego, os autônomos sem serviço, e o precariado, os uberizados, o lupenato, as multidões dos sem terra e dos sem teto, dos que vagam nos campos e nas cidades sem esperança e sem futuro. É preciso parar esse desvairado, e o Sendo Federal tem em suas mãos a grande saída: a Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia  que o presidente do Senado Federal (quem é ele mesmo?) engavetou.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Sem o impeachment, afundaremos na desordem e no arbítrio



FORA BOLSONARO!


 
O “Fora Bolsonaro” só pode realizar-se mediante o impeachment, a alternativa constitucional de que dispõe o presidencialismo.

Impeachment não é mera decisão político-jurídica. Antes de tudo, compreende movimento social poderoso, alcançando todos os segmentos da opinião nacional. No fundo, trata-se de reação da soberania popular traída pelo cometimento de crimes de responsabilidade.

 O ápice do movimento é a homologação pelo Congresso. Na formalidade jurídica do impeachment, o parlamentar cumpre seu papel premido entre vantagens que podem auferir do governante ameaçado e a preservação de sua própria legitimidade política.

Quando, em 1992, Ibsen Pinheiro pautou o impeachment de Collor de Mello, a opinião da sociedade estava formada. A constitucionalidade, no caso, podia ser discutível, mas o Presidente já não governava, aguardava a consumação do rito congressual.

O caso de Dilma Rousseff ilustra ainda melhor o processo. A mandatária foi cassada sem crime de responsabilidade. O Congresso dobrou-se à bem sucedida campanha golpista que objetivava condenar a esquerda. O mandato de Dilma teria sido preservado, caso não estivesse desvalida de apoio de massas.

O impeachment é viabilizado nas ruas e termina no julgamento do Senado. Entre os pontos de partida e de chegada, há uma travessia que se faz ao caminhar: o movimento cria sua própria amplitude e  legitimação.

Hoje, o pleito do impeachment, ou o “Fora Bolsonaro”, é palavra de ordem aglutinadora de uma indisposição social crescente. Crimes de responsabilidade se acumulam, mas o que conta é o fato de parcelas consideráveis da sociedade repudiarem o governo genocida e não se conformarem com sua permanência.

Um conjunto minoritário e decrescente apoia Bolsonaro baseado em crenças desarrazoadas, promovidas pelo ativismo obscurantista, predisposto a negar a realidade. Mobilizado pelo apóstolo do caos, este conjunto opera em favor do confronto sangrento. Alguns têm como horizonte a guerra civil sonhada pelo Presidente. Amparado por homens armados, o genocida não hesita em sabotar os laços da união nacional.

 A maioria dos brasileiros vive no desassossego, no medo e na incerteza desmobilizadora. Teme a peste e sofre a dor de perdas irreparáveis; sufoca em lágrimas o grito de revolta.

Os mais pobres não têm como como driblar a fome. Abatidos e atônitos, pais e mães de família perdem a esperança de encontrar trabalho.

 Os pequenos e médios empresários vivenciam o pavor do encerramento de seus negócios. Servidores públicos assistem indefesos às ameaças de cortes de salários.

A sociedade mergulha na desesperança paralisante enquanto os pouquíssimos beneficiados com a política de desmonte do Estado, dos direitos sociais e da proteção ambiental acompanham apreensivos os rumos do país. Sabem que a fúria popular tem seu preço. Observam matreiros as propensões sociais medindo o tempo de validade do Presidente.

Alguns relutam em retirá-lo partindo de um raciocínio amoral: “deixa o governo sangrar para que seja mais facilmente derrotado!”. O repugnante desta forma de pensar é o menosprezo pela vida dos brasileiros. É raciocínio de criminoso.

Outros, julgam que o impeachment seria a concretização de diabólico planejamento militar: os descalabros e sandices do Presidente teriam o efeito de provocar o caos para em seguida a ordem ser reposta pelas fileiras. Pela enésima vez os soldados salvariam a pátria. Esta é uma possibilidade que merece consideração.

É necessário pensar em impeachment imaginando tanto o processo em si quanto o dia seguinte, notadamente em virtude de o substituto constitucional do titular não merecer confiança. O atual Vice não reproduziria as atitudes grosseiras e apelativas do titular, mas endossaria, assim como os seus fiéis colegas de farda, as linhas gerais do governo. A rigor, constituem o próprio governo.

Ocorre que a mobilização popular pelo impeachment pode condicionar o dia seguinte. O Fora Bolsonaro só será inconsequente caso não aponte  mudanças de teor na condução do governo. Não basta mandar Bolsonaro para casa ou para a cadeia. Cabe derrotar politicamente as forças que o patrocinam, entre elas, militares que, subvertendo a Ordem, atuam como atores políticos em detrimento de suas funções institucionais. 

Substituindo Bolsonaro, Mourão terá que respeitar os desígnios de uma sociedade mobilizada pela defesa da vida e do próprio Estado. Os quartéis se dobrarão à vontade social mobilizada. Saberão que passou o tempo de salvar a pátria em nome do povo bestificado.

O impeachment precisa significar o fim da curatela castrense e o estabelecimento de um acordo entre forças políticas que garanta a governabilidade segundo um programa emergencial básico. Do contrário, o ruinoso quadro brasileiro será agravado.

No processo de impeachment as teses sobre os rumos do país irão se firmando e se impondo. As múltiplas demandas serão explicitadas. Haverá confrontos programáticos, porém, não mais reservados ao pequeno número de dirigentes partidários e os donos da riqueza.

O pleito do impeachment será o imã que agregará as variadas aspirações de nossa sociedade. Hoje, contrapor-se ao impeachment é apostar na paralisia e no caos. Defende-lo é lutar pela ordem democrática, pela dignidade nacional, pela defesa da sociedade e pela retomada do desenvolvimento.

Sem o impeachment, afundaremos na desordem e no arbítrio.

Fora, Bolsonaro!


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O trumpismo foi legitimado e segue vivo

Uma sociedade esgarçada pela polarização política, social, racial e geográfica.  
Joe Biden precisava de uma vitória avassaladora, que não teve. 

Roberto Amaral

Após dias de suspense, a vitória de Joe Biden foi, enfim, anunciada, aliviando a angústia e os temores dos que repelem a degradação da política. No plano internacional, esse resultado alimenta a esperança na retomada do diálogo multilateral. Em princípio, pois, a transmissão de cargo no dia 20 de janeiro próximo não será uma mera troca de presidentes, como já não fôra a de Obama por Donald Trump, como se viria depois.

A magra margem de votos com que Biden superou seu adversário, tema destas reflexões escritas em cima dos acontecimentos, é o outro lado de um história intrincada: a extraordinária votação obtida por Trump ao fim de um governo pantanoso, pontuado por escândalos, em meio a crise econômica e social, violência policial, acirramento do racismo e de permeio uma epidemia enfrentada com extrema irresponsabilidade, atingindo 9,5 milhões de pessoas e cobrando, até aqui, 255 mil vidas.

No momento em que escrevo as agências dão conta de que o incumbente, apesar de tudo, obteve a aprovação de cerca 48% dos eleitores, (algo como 70 milhões de votos), superando a marca obtida em 2016. Biden deverá ser diplomado com de 51% dos votos. Diferença muito pequena, como se vê. Os números escancaram a tragédia: o que Trump representa não morreu. Essa deformação político-ideológica tem ao seu lado praticamente a metade do país. A lamentável conclusão é esta: o trumpismo, entendido como a radicalização conservadora e reacionária dos republicanos, foi legitimado e segue vivo.

Trump teve mais votos do que na eleição em que se sagrou vencedor, quando apareceu como o “novo” para um eleitorado que diziam cansado da política, dos políticos e dos velhos caciques que controlam as duas siglas partidárias que engessam a abalada democracia representativa dos EUA, a cada eleição mais afastada dos fundamentos da soberania popular. Trump, porém, não é mais nem o “novo” nem o anti-establisment, é o conhecido e provado. Assim é que foi votado. Vê-se, daí, que sua eleição em 2016 não foi um acidente de percurso e que a votação de 2020 sorri-lhe como um referendo ao seu maldito governo. O trumpismo, essa espécie de populismo nacionalista de extrema-direita – uma cultura política nutrida na agressão aos oponentes (transformados em inimigos a serem liquidados) – fala à alma norte-americana, e não desaparecerá de cena quando o apresentador de TV e homem de muitos negócios deixar a Casa Branca.

Que sociedade é essa que assim expõe suas fraturas?

Uma sociedade esgarçada pela polarização política, social, racial e geográfica.

Um país dividido e ressentido.

Uma sociedade perdida na transição entre o velho e o novo: o presente (que procura preservar) e o futuro (que teme), entre o hegemonismo e a competição, o unilateralismo e o multilateralismo, angustiada diante da decadência inelutável do império. A sociedade do super-homem se descobre vulnerável e entra em crise. Noutros tempos, crises profundas da nação produziram Lincoln e Roosevelt. Desta feita, depois dos dois Bush, produziu Donald Trump. O presidente que sai personifica o conflito de que depende para sobreviver, estimulando preconceitos, recalques, o primitivismo político, social e religioso, o moralismo hipócrita da sociedade branca, rural e segregacionista, explorando o rancor dos esquecidos pela globalização dos ricos.

E fez discípulos mundo afora. No Brasil temos um clone. Como o original, sem qualquer apreço pela política, pela lei, pela verdade, pelo decoro.

Trump, com o discurso do ódio, a desmoralização das instituições que dão sustentação ao sistema de poder norte-americano, deixa o país convulsionado. É o último estágio de uma “guerra civil” moderna, que não está nas catalogações da história nem nos manuais de teoria política por fugir aos modelos clássicos, de que a “guerra da secessão” é paradigma. Trata-se de “guerra” não declarada, sem disputa de território, sem “teatro de operações”, mas com muitas vítimas. Uma “guerra” que se processará na violência do dia-a-dia de uma sociedade armada até os dentes. Os conflitos gerados por uma sociedade do consumo conspícuo mas que não atende às necessidades das grandes massas desalojadas do mercado de trabalho, empobrecidas, embora vivendo no país mais rico do mundo.

O que salta aos olhos é a divisão do país em partes perigosamente simétricas. São estes os EUA que Biden e sua vice – uma ex-promotora de Justiça linha dura – receberão de Donald Trump, prevalecendo, como certamente prevalecerão, as regras do jogo.

De Donald Trump tudo se pode esperar. O mais provável é a continuidade da beligerância de que já dá notícia ao não reconhecer a vitória do adversário leal e acusar de fraude o processo eleitoral, enxovalhando a institucionalidade do país. Trump é suficientemente irresponsável para aprofundar o mal-estar, e pode fazer do desalento e do desespero o estopim de uma explosão social capaz de levar pelos ares o “sonho americano” dos pais fundadores.

Trump perdeu as eleições, mas fez a maioria do Senado e a maioria dos governadores, e ainda surrupiou dos democratas várias cadeiras na Câmara dos Representantes. Mostrou amplo apoio popular. Tem bala na agulha. E ainda tem cerca de dois meses de Casa Branca, podendo levar a limites inimaginados seu contencioso com os fatos.

Joe Biden precisava de uma vitória avassaladora, que não teve. O que será seu governo, é difícil prever. Sabe-se o que se espera dele, o que se deseja, mas conhecemos suas limitações institucionais e políticas, a começar pela pequena margem de votos que sobrepôs ao adversário e o fato de que governará com um Senado hostil, o que limitará em muito a execução de seu programa de governo, como a expansão do ObamaCare, o aumento do salário mínimo ou a majoração dos impostos cobrados aos mais ricos e às grandes corporações, isentados por Trump.

Os interesses estruturais e geopolíticos dos EUA não se alterarão, eis que pairam acima da disputa entre democratas e republicanos. No plano internacional, o novo presidente será festejado por aliados e pela comunidade cansada dos maus modos de seu antecessor. Os EUA retornarão à OMS e ao Acordo de Paris. Levarão um pouco mais a sério o aquecimento global e a defesa do meio ambiente. Continuará, porém, a guerra comercial (mas igualmente científica e tecnológica) com a China, talvez de forma mais silenciosa, mas a disputa com o “império do centro” seguirá sendo a prioridade da política externa, de par com a contenção militar da Rússia. Talvez Biden reveja o acordo nuclear com o Irã, rompido por Trump. A política no Oriente Médio, porém, não deve sofrer alterações, os países amigos e os inimigos continuarão os mesmos. Mas certamente não ocorrerão novas invasões, como a do Iraque (Bush filho) e a da Líbia (Obama).

Quanto ao nosso continente, a Doutrina Monroe persistirá firme como o Pão de Açúcar. A América do Sul seguirá sob controle estratégico. Cuba, Nicarágua e Venezuela continuarão como incômodos, até aqui irremovíveis. O que pode ser novidade é o descarte do intervencionismo descarado de Trump e seu entourage. Apesar da retórica imperialista de Biden, é possível uma solução negociada com a Venezuela (Maduro já pediu diálogo). Relativamente à Bolívia, o futuro presidente pode aguardar a definição do que será o governo de Luís Arce.

A OEA continuará prestigiada.

O Brasil permanecerá como um caso à parte, para o bem e para o mal, pois esse é o preço de sua importância territorial, econômica e logística. Biden não deverá dar corda ao obscurantismo de Bolsonaro, e certamente nos criará problemas na OMC, resistirá a apoiar o ingresso do Brasil na OCDE e dará aguardados pitacos na defesa da Amazônia. Os presidentes democratas são conhecidos por suas políticas protecionistas e, evidentemente, Biden não suavizará as pressões do atual governo sobre nossas exportações de álcool, alumínio, aço, etanol e commodities agrícolas. No mais, as relações entre os dois países voarão em “céu de brigadeiro”. O apego de Bolsonaro, no fundamental, é ao americanismo. As “relações carnais” com Trump são apenas a sua expressão mais abjeta. O entreguismo, que é a pedra de toque, permanecerá, e os EUA muito o cultivarão por que isso atende aos interesses da sua economia, como lhes interessa a conservação de uma política externa como a nossa atual, subordinada a Washington. Do ponto de vista norte-americano, portanto, não há o que mudar. Muito menos na área militar, pois a estratégia brasileira é, e não de agora, funcionar como força auxiliar dos EUA na América do Sul. Biden negociará com Bolsonaro, ainda que certamente tenha nojo dos súditos subservientes.

Biden tem razões para não gostar da nossa caricatura de Trump, mas não deverá criar embaraços a um governo cujas políticas servem, bovinamente, aos interesses dos EUA. Esse fato pode frustrar algumas esperanças de certos círculos da esquerda brasileira, mas igualmente devem nos alertar de que para enfrentar e derrotar o bolsonarismo precisamos contar menos com os astros, e mais com nosso engenho e arte.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O Ensaio Venezuelano


Roberto Amaral

Seria bom nossa diplomacia lembrar que o trumpismo que vale hoje para a Venezuela, amanhã valerá para nós

Eis o principal legado do quase primeiro mês de bolsonarismo: abandonamos o posto e a responsabilidade de liderança regional para cumprir o papel de coadjuvantes da política ditada pelos interesses e conveniências da estratégia de guerra dos EUA de Donald Trump, voltados, agora mais consistentemente, para o Atlântico Sul e a América do Sul, aproveitando, até, o vácuo deixado pelo Brasil.

Por força de sua história e de sua liderança, o Brasil se havia destacado por alimentar o espírito integracionista e esta foi a maior proeza, e também a atitude mais arriscada de nossa política externa, desdenhada nos breves dias do novo governo.

Na contramão de nossa história, o Brasil oficial, mesquinho, renuncia a esse papel para assumir o de reles capitão-do-mato do pior da pior política estadunidense, servindo-lhe de instrumento para a agressão à Venezuela, o alvo da vez.

Na garupa do trumpismo – que retoma grotescamente a doutrina Monroe e a política do big stick – abandonamos, contra nossos interesses, o compromisso com a solidariedade continental, insensatamente esquecidos de que o que vale, hoje, para a Venezuela, seus recursos e seu processo político, valerá também para nós, hoje e amanhã.

O preço maior dessa violência, poderá ser a guerra civil em sub-região estratégica para a segurança coletiva e para nossa própria segurança. Fala-se mesmo em balcanização e em guerra interestatal!

A expectativa de caos é o outro lado da até aqui bem sucedida desestabilização dos regimes progressistas da região (já se foram Brasil, Argentina e Equador), objetivo do Departamento de Estado dos EUA, revivendo os tempos da Guerra Fria, desta feita sem a alegada ameaça da URSS. Mas, quando não se tem inimigos de fato, cria-se.

Se o intervencionismo dos EUA antes contou com nossa resistência, hoje dispõe de nossa diplomacia e de nossas tropas, como delas já dispuseram em 1965 para consolidar a invasão da pobre e pequena e sofredora República Dominicana, que ousara eleger um presidente (Juan Bosch), acusado de nacionalista, isto é, comprometido com os interesses de seu país e de seu povo…

Assim, mas não de forma surpreendente, pois o capitão já disse a que veio, em pouco menos de um mês toda a história da diplomacia brasileira, de Rio Branco a Celso Amorim-Samuel Pinheiro Guimarães, foi jogada na lata do lixo, e a política ativa e altiva do ministro de Lula é substituída pelo acocoramento ideológico, uma subalternidade sabuja, que chega às raias da dependência psicológica, aquele sentimento de inferioridade introjetado pelo colonizado eternizando o domínio do senhor, a cujos interesses e valores mais se submete quanto mais apanha, pois a humilhação transforma-se numa necessidade de sua índole deformada.

Brevemente nosso chanceler (seja o Policarpo Quaresma de hoje, seja seu eventual substituto) voltará a tirar os sapatos para passar pela alfândega dos EUA. Hoje sabemos que o lamentável gesto de Celso Lafer, carregado de simbologia, antecipava, por décadas, a que ponto de alienação pode chegar um governo de arrivistas cuja política externa abandonou a ‘ideologia’ da independência em busca de soberania, pela ‘desideologia’ da renúncia ao interesse nacional.

As ameaças que pesam sobre a Venezuela (de que é mesmo de que ela é acusada, para justificar tanto ódio?) não têm amparo no Direito Internacional, na Carta da ONU, nem na Carta da OEA, cujo artigo 15 nos diz: “Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro”.

Na mesma linha vem o comando da Constituição brasileira (art.4º): “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; VII – solução pacífica dos conflitos; VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X – concessão de asilo político.”

E no entanto nosso país, pelas mãos do bolsonarismo, essa doença tacanha que nos aflige, rasga a Constituição e apoia a política intervencionista de Donald Trump!

Qual o pretexto (pois razão não há) para o garrote vil que é o cerco imposto, há décadas, pelos EUA e seus aliados ao país vizinho? O pretexto é a suposta “ilegitimidade” do governo Maduro, um falso problema que não leva os EUA a intervir em países onde não têm interesses, ou onde seus interesses estão devidamente atendidos.

Qual a base política ou jurídica para decretar essa ilegitimidade?

Maduro foi eleito em 2018 em pleito acompanhado por jornalistas e observadores e organismos internacionais, do qual participaram 16 partidos políticos. Concorreu com cinco adversários, e obteve 67,85% dos votos. A oposição, que negociara a antecipação das eleições de dezembro para maio, dividiu-se na disputa eleitoral e perdeu, mais uma vez.

A propósito, Maduro, ao contrário de Trump, teve mais votos do que seu concorrente.

Qual o malabarismo jurídico para a decisão de Trump, seguido pelo Brasil e outros satélites de sua política externa, de exigir a renúncia de um presidente de um país independente? A questão democrática? Ora, nessa hipótese ninguém pode apostar, afora os néscios e os muito sabidos.

Qual a autoridade moral de que podem se revestir neste tocante os EUA, histórico sustentáculo de todas as ditaduras modernas, seja na África, seja na Europa, seja na Ásia (uma só menção, o Vietnã do Norte), no Oriente Médio (exemplo, a Arábia Saudita)? Que autoridade tem esse país para falar em democracia entre nós, se aqui amparou (e delas muito usufruiu) as ditaduras de Batista (Cuba), Somoza (Nicarágua), Trujillo (República Dominicana), Stroessner (Paraguai) e todos os sátrapas venezuelanos até a ascensão de Chávez que tentou depor na tentativa, frustrada, de golpe que patrocinou em 2002? EUA que apoiaram a implantação das luciferinas ditaduras militares do Brasil, da Argentina, do Chile e do Uruguai, e o regime tão perverso quanto corrupto de Fujimori, no Peru? Invadiu Granada e com as tropas brasileiras (Castello Branco) destroçou a democracia dominicana?

Em socorro dessa política intervencionista corre a União Europeia, mãe de Salazar, Franco, Mussolini e Hitler, cúmplice do stalinismo e sócia dos coronéis que sufocaram a Grécia nos anos 1967-1974.

O que essa UE nos tem a dizer dos regimes protofascistas na Polônia e na Hungria? Nada? Não lhes vai dar prazo de oito dias para se converterem à democracia? Mas caberia questionar: o ultimato prepotente seria um modo adequado, aceitável, de encaminhar solução para o Brexit, para a autonomia da Catalunha, para a crise dos “coletes-amarelos”, ou ainda para o impasse entre democratas e republicanos que paralisou o governo dos EUA por vários dias, causando sofrimento e prejuízos de monta?

Por que a União Europeia não deu prazo a Putin para devolver a Crimeia? Ou à China para entregar o Tibete ao Dalai-Lama? Por que não dedicar um pouco desse furor democrático para encerrar os dias do regime de Rodrigo Duterte nas Filipinas?

O governo Maduro é passível de críticas e os caminhos da revolução bolivariana podem e devem ser discutidos.

Mas, quando se fala em sua crise a grande imprensa omite as tentativas de inviabilização econômica da Venezuela, vítima de perversa “guerra econômica”. A hiperinflação venezuelana é induzida e sua capacidade de importação é inviabilizada pelo sufoco cambial. Seus ativos estão sendo sequestrados por europeus e pelos EUA que acabam de bloquear recursos da PDVSA, devidos pelo fornecimento de petróleo ao império, que também bloqueou seus bens. Qual é o nome disso? Pirataria? A proeza de Maduro é mesmo a de sobreviver, em que pese esse terrível boicote, que, atingindo o governo, mais penaliza os venezuelanos pobres.

Ao lado de muitos acertos – e como esquecer os esforços do chavismo visando a atender às gritantes demandas sociais !– muitos erros, sem dúvida, podem ser apontados. Mas não é nada disso o que está em jogo, bem longe passam as convicções democráticas e as preocupações com o povo venezuelano. Todo o mundo sabe disso, desde aquela senhora que viu Cristo dependurado em um galho de goiabeira até o irrequieto general Mourão, para quem o único erro dos golpistas de 2002 foi não haverem assassinado Chávez, quando o prenderam.

O que está na ordem do dia é a falsa disputa Ocidente versus Oriente inventada pelo Pentágono, que, na verdade, é a explicitação da disputa (real) entre o cansaço econômico dos EUA e a emergência da China como potência que lhe pode fazer face e que precisa ser afastada antes de se tornar uma ameaça militar, com a aliança nuclear oferecida pela Rússia.

O que está em jogo é o papel do Atlântico Sul no conflito programado, e, nele, o da América do Sul e nela, por sua vez, o destino da maior reserva de petróleo do mundo, que, para azar seu, está nos campos da Venezuela.

Não pensem os democratas brasileiros sinceros que terão vida fácil se o golpe contra Maduro for bem-sucedido.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O novo tempo dos monstros


Gramsci define o  ciclo de tragédias que nascia com a primeira grande guerra como o “tempo dos monstros”:  o velho mundo agonizava, mas  o novo ainda lutava para nascer.

Esse transe dolorido parece estar de volta, mas quem se mostra ferido de morte é o novo, com o retorno  imperial do passado, numa tentativa de reter o amanhã. O velho  não saiu do Oriente Médio; renasce na Europa e se instala nos EUA, de onde promete irradiar-se, pela força do imperialismo.

Anuncia-se uma nova ‘Santa Aliança’ com a pretensão de reordenar o mundo, sob um novo projeto conservador,  substituídos os  impérios  russo e austríaco de então e o reino  da Prússia, pelos EUA de Donald Trump, seus aliados europeus e  Israel e a Arábia Saudita.

A esse grupo, o Brasil de Bolsonaro   pede ingresso. Dele, adesista,  já se oferece como seu ‘capitão do mato’ no Atlântico Sul, cuidando, como preposto, da América do Sul e da África Ocidental.

O novo ‘tempo dos monstros’ lembra a articulação reacionária dos anos 30 do século passado, quando foram gestados o nazi-fascismo e o stalinismo, o Eixo e a II Guerra Mundial  que se desdobraria, até quase nossos dias. A Guerra Fria, renascente, pretende exprimir a  falsa oposição Ocidente versus Oriente transformada pelo trumpismo na díade EUA versus China e Rússia.

Guardadas as diferenças e consideradas as semelhanças (e como não havê-las?), vivemos, hoje, outros tempos, embora não necessariamente novos, porque a História não se repete. Ao  invés de farsa, nos aproximamos mais e mais de uma tragédia: a volta a caminhos já percorridos, dos quais não guardamos boas lembranças. Trata-se de  recuo, que, em termos mundiais, revive o período entre as duas guerras mundiais, e, olhando para nossa realidade, representa um retorno ao regime militar. A distinção entre o mandarinato corporativo de 1964-1985 e o governo recém empossado não anula o caráter ideológico comum, nem minimiza o retorno da preeminência da caserna.

Nossos acadêmicos, de volta a Bizâncio, discutem se o novo regime – o governo Bolsonaro será um novo regime – é um projeto fascista, neofascista ou pós-fascista, pois não se confunde com as experiências clássicas da Itália, da Alemanha e do Japão dos anos 30/40 do século passado, as quais, distintas entre si, relembre-se, também se distinguiram de suas congêneres portuguesa e espanhola. Em comum, como o Estado Novo varguista e o regime militar instalado em 1964, cultivaram a repressão e o anticomunismo que, aqui e agora, o bolsonarismo tenta recuperar, nada obstante a ausência de matéria-prima. Porque todo regime autoritário – seja ele os EUA de Donald Trump, o hitlerismo, a ditadura brasileira ou o grotesco, embora perverso, regime dos militares argentinos – necessita de um inimigo. Quando este não existe, cria-se.

Diz-se que o bolsonarismo distingue-se de suas raízes históricas por não possuir um corpo para-militar. Ora ele dispõe em sua retaguarda sa maioria das forças armadas e de de todas as corpirações  civis e militares (polícias, ministério público etc.) encarregadas da repressão

Esquece-se a média dos analistas —  pensando o processo social a partir de leis e padrões e modelos — que a História não se desenvolve  em monótona rota linear; ela conhece círculos e  ciclos, move-se como as marés e nenhuma onda do mar é a exata reproducão de sua antecessora, embora dela haja nascido.

Os atuais governos da França, da Hungria, da Polônia e da Turquia, para citar apenas esses, como o atual governo dos EUA, embora guardem profundas distinções entre em si, são todos de direita e mesmo de extrema-direita; recebem apoio de saudosistas do nazismo e constituem um conjunto político-estratégico em ação no plano internacional.  Suas diferenças não anulam orientações doutrinárias expressas na intolerância política, no nacionalismo, na xenofobia, na aversão ao  multilateralismo, no anticientificismo, na negação do Estado laico e na instrumentalização do medo e da insegurança como ferramentas de mando.

O regime imposto em 1964 e o bolsonarismo estão separados por 55 anos de processo social e história. Afora o mais, um resultou de golpe de Estado perpetrado por uma aliança civil-militar, e outro de eleições até aqui consideradas formalmente legítimas.  As diferenças óbvias e consequentes, todavia,  não nos impedem de agrupá-los no largo campo da direita, o gênero do qual são espécies a extrema-direita, o fascismo, o nazismo, o salazarismo, o franquismo e uma lista sem fim que não termina nem no Chile de Pinochet. Essa classificação, aliás, é reivindicada pelos seus áulicos, de ontem e de hoje.

O fato objetivo é que o discurso do bolsonarismo, desde a medíocre vida parlamentar do capitão, um barbarismo repetido na campanha eleitoral e nos discursos de posse, acena com a intolerância,  anúncio da divisão do país em dois segmentos antípodas e incompatíveis, uma intolerância (nela embutida a política do medo) que é artificial no embate político e que jamais se supôs compatível com a festejada índole cordial e pacífica, relaxada, de nosso povo. Essa intolerância, sabidamente essencial na disputa pelo poder, revela-se indispensável para sua conservação.

Daí o palanque no governo.

O capitão (saído da caserna pelas portas dos fundos)  não deseja ser ‘o presidente de todos os brasileiros’, como se anunciavam os governantes, mesmo os generais da ditadura militar, mas de uma parte deles, e promete governar contra os outros, mantendo em oposição os dois gomos da laranja ideológica.

Ao estabelecer  a divisão do país entre esquerda e direita, aquela como o inimigo a ser abatido, Bolsonaro sugere serem de esquerda todos os que a ele se opõem, e esses, se não renunciam aos seus projetos, ou buscam o exílio, devem ter a cadeia como expectativa de presente imediato.

Na construção do inimigo, cuja ameaça galvaniza apoios, o capitão elege o que identifica como  a esquerda brasileira, nesse conceito reunindo  tudo o que detesta: a esquerda propriamente dita, os socialistas, os comunistas, os trabalhistas de um modo geral, os ambientalistas, os liberais e os democratas de todo gênero. E, principalmente, o lulismo, cuja destruição é o mote de resistência da direita brasileira. A esquerda real – que não é a oposição toda – assume, assim, por imperativo das necessidades táticas da estratégia da extrema-direita,  um protagonismo superior às suas forças.

Mas qual é seu próprio projeto, considerados seus valores e as circunstâncias de hoje? Evidentemente que a Frente Ampla (e somente será ampla se estiver aberta à participação de todos aqueles que lutam hoje e pretendem continuar lutando contra o regime em instalação) é a primeira alternativa tática. Trata-se, como ponto de partida, de resistir ao inimigo para derrota-lo na primeira oportunidade, e ao final,  tomar as rédeas do governo para realizar seu projeto de sociedade. Mas qual é esse projeto? Hoje não está claro, nem do ponto de vista tático, nem do ponto de vista estratégico.

E está ainda menos claro quem exercerá sua liderança.

Independentemente de qualquer classificação acadêmica, arquiteta-se aos nossos olhos um  projeto político hegemônico com vocação  duradoura, no qual as forças armadas brasileiras, como coletivo, desempenham o duplo   papel de sujeito e retaguarda. Esse projeto – que interessa à geopolítica ditada pela grande potência–  aspira a algo para além do partido único, desprezados para qualquer fim considerações republicanas ou cuidados com as instituições. Os meios serão ditados pelas exigências do poder.

Seu catecismo compreende nosso isolamento internacional, uma politica anti-imigratória, o desrespeito aos direitos identitários conquistados ao longo de dezenas de anos de lutas, a repressão aos movimentos populares e sindicais de uma forma geral, e o MST e as centrais sindicais de esquerda  de modo particular, ou seja, mais restrições aos direitos  dos trabalhadores, mais recessão, mais insegurança e desemprego. Mais medo, enfim.

Este é o caráter do nosso “tempo de monstros”.

Sigmaringa Seixas – Dele poder-se-á dizer tratar-se de um extraordinário parlamentar, constituinte inspirado, excepcional advogado, amigo leal e caráter sem jaça. Mas tudo o que se disser desse amigo que nos deixa, quando tanto precisávamos dele, será pouco, porque ele era, acima de tudo, um grande homem: aguerrido defensor de presos políticos; destemido na luta, jamais conciliou cedendo princípios,  embora fosse sempre, na política e na advocacia, um  hábil construtor de consensos. Será lembrado com amor e saudade.

Marielle – Quando as autoridades militares e policiais anunciarão ao país os nomes dos mandantes da chacina que matou a vereadora Marielle Franco e seu motorista? Não podemos permitir que este crime político se torne mais um crime insolúvel e impune.

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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

O Brasil não pode virar uma província talibã


Roberto Amaral

O governo do capitão Messias ameaça mergulhar-nos de corpo inteiro em regressão mais profunda do que aquela que parece acometer o mundo ocidental sob o comando de Trump, seu grande ídolo e inspirador, depois do cel. Brilhante Ustra, o facínora. Se realizar o prometido, assistiremos a cenas dignas dos fanáticos do Estado Islâmico. Reviveremos situações registradas sob o nazifascismo. Experimentaremos as práticas do macarthismo, que agrediram as noções de civilidade firmadas após as catástrofes das guerras mundiais. Mergulharemos na era do ódio à inteligência, como sofreram os espanhóis sob os falangistas.

Viveremos abomináveis perseguições aos escritores, artistas, educadores e cientistas; enterraremo-nos na macabra ofensiva contra a liberdade de expressão, incompatível com as noções de civilidade às quais nos acostumamos – ou quando, menos, aspiramos – na segunda metade do século XX.

Os fundamentalistas de todo jaez detestam a dissonância, o outro, o diferente. Quem discorde de suas proposições é considerado estrangeiro na pátria de que esses senhores se julgam donos. Podemos, assim,  retornar ao “Brasil, ame-o ou deixe-o” dos anos 70, copiado do obscurantismo que tomou conta dos EUA e que desembocou, naqueles idos, na estúpida guerra contra  o povo vietnamita.

(Não nos esqueçamos de que uma rede de televisão comemorou a vitória do capitão reeditando o slogan infame.)

Na contramão do interesse do país e de sua gente, o capitão anuncia, para além de perseguição político-ideológica, o corte de recursos destinados às universidades públicas, a cobrança de mensalidade em instituições federais e progressiva introdução do ensino à distância (por natureza dissociativo) em substituição ao ensino presencial, “foco das pregações marxistas”, segundo esses desatinados.

O anunciado ministro da Educação, cuja existência intelectual só agora se fez conhecida, não fala em mais recursos para sua pasta, não indica metas para  a expansão e melhoria do ensino universitário, da pesquisa e da inovação, sem o que este país não conhecerá o desenvolvimento a que seu povo faz jus. Em seu delírio, o ministro vindouro recita o catecismo da futura administração, cujo centro ideológico é a “escola sem partido”, em substituição à escola que ensina o aluno a pensar, a criticar, a descobrir, a inventar.

O objetivo da educação não seria mais o preparo de jovens para a cidadania, o trabalho, a vida; não teria mais como objetivo a compreensão do papel do indivíduo na construção do mundo (Non scholae sed vita discimus, ensinavam os romanos), mas a superação de uma suposta ‘doutrinação bolivariana’ de índole cientificista, que inocularia em nossos estudantes o vírus da anti-família e da anti-sociedade, do anti-Deus, da antirreligião e do anti-criacionismo.

Assim a má-fé e a ignorância marcham de mãos dadas.

Para o anunciado novo ministro das Relações Exteriores, a Revolução Francesa foi um  projeto comunista avant la lettre;  a globalização, uma artimanha maoísta; o aquecimento global  não passaria de invenção do “marxismo cultural”. O “Ocidente” estaria em perigo e sua salvação dependeria do sucesso de Donald Trump, de cuja geopolítica belicista logo se põe a serviço, em miserável genuflexão, jogando no lixo uma tradição de dignidade que remonta ao Barão de Rio Branco: a da Política Externa como projeção dos nossos interesses e de nossa soberania.

Regressamos – o que até há pouco parecia inimaginável –  aos tempos do general Juracy Magalhães, embaixador de Castello Branco e da ditadura militar em Washington, a quem se deve essa joia de vassalagem: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

O futuro chanceler é um poço sem fundo de anacronismo e paranoia. Suas tiradas sem cabimento expõem o país ao ridículo. Sua pauta de atuação, declara em artigo na Gazeta do Povo é o combate das  “pautas abortistas e anticristãs” e das tentativas de  “destruição da identidade dos povos por meio da imigração ilimitada”. Promete extirpar da Política Externa a defesa da  “laicidade” e da diversidade, a contestação do patriarcado e da diferenciação dos sexos, bandeiras que conjuga  sob o conceito de “antinatalismo” – que, alienista alienado, acredita ser uma invenção da esquerda.

O capitão, seu chefe, na cediça linha de antecipar serviços à Casa Branca, proclama a filiação  brasileira à política anti-China de Trump, ignorando que se trata de nosso maior investidor (e dizem que as ‘reformas’ visam a atrair capital estrangeiro!) e nosso principal mercado importador; declama desprezo pelo Mercosul, o maior importador de nossos manufaturados, em tempos de gravíssima crise industrial. Pensando em agradar a Trump, ameaça segui-lo nas provocações contra os palestinos, ignorando serem  os árabes os maiores importadores de proteína animal brasileira,. O filho deputado, em Washington, na sequência de encontro com Jared Kushner (conselheiro sênior da Casa Branca), anuncia o Irã (depois da China, de Cuba e de Venezuela) como o mais novo alvo de nossa Política Externa. Significativamente, deixa-se fotografar com um boné da campanha de Trump para 2020.

 Além de vexame internacional, trata-se da sabotagem de nossos interesses econômicos indiscutíveis.

A condução imperial de nossa política econômica, como sempre, e desta vez como nunca, é capturada pelo rentismo e pelo ‘mercado’, doravante, e mais que nunca, senhores de baraço e cutelo de nossas vidas.

Por sua vez, o ‘posto Ipiranga’, jejuno em gestão pública (já demonstrou desconhecer até mesmo o trâmite da Lei Orçamentária…), anuncia uma privatização geral e universal, sem limites, sem razão, sem nexo, sem preocupação com as responsabilidades sociais do Estado e mesmo sem cuidado com aspectos da Defesa nacional, em que pese a presença dominante de militares nos postos chaves da República e no entorno do futuro presidente. A consequência da privatização irresponsável  será a destruição dos últimos instrumentos de atuação do  Estado como indutor do desenvolvimento, muitos desses instrumentos montados ao longo de décadas, inclusive com o auxílio dos próprios colegas de  farda.

Por trás de tudo estão empresas e bancos de negócios dos Chicago boys brasileiros que integram a equipe do plenipotenciário ministro da Economia, depois de se reciclarem na Fundação Getúlio Vargas e ganharem fortunas no mercado de compra-e-venda de ativos.

Teremos saudades da privataria tucana.

Está em curso um projeto de poder que visa a destruir o futuro autônomo da nação brasileira, fazendo-a retornar aos tempos de Colônia, mero território produtor de matérias necessárias ao consumo das metrópoles: minérios, açúcar, café a que se agregam petróleo bruto, alimentos em grão, e  o papel de montador de componentes importados. Esse  colonialismo – econômico, cultural, ideológico, militar – prossegue na extração da renda e da riqueza nacionais, relegando-nos à subalternidade frente às grandes potências.

Esse projeto derroga nossos anseios de independência, desenvolvimento e soberania, e acena com um governo guiado por um  breviário que sincretiza fundamentalismo pentecostal, regressão política e autoritarismo. Levado a cabo,  transformaria  um dos mais belos e promissores  países do mundo numa província talibã.

Cabe-nos, porém,  impedir que o passado se imponha ao futuro e que o atraso derrote o progresso. O caminho é o da organização e da unidade em torno da defesa da democracia e do progresso social, e nosso instrumento de luta, hoje (como foi no passado recente), é a frente ampla, reunindo todos os democratas. Neste momento e em face da grandeza do desafio, a preeminência de divergências secundárias equivale a um ato de traição.

Marielle – Quando conheceremos os nomes dos mandantes de seu assassinato?

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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia