domingo, 25 de agosto de 2019

O fim da Amazônia


Antonio Prata
A noite no meio do dia me pareceu um sinal óbvio demais para ser ignorado
Lembro bem do dia em que o céu escureceu. Dezenove de agosto de 2019. No meio da tarde, a fumaça das queimadas florestais encontrou uma frente fria e virou noite em São Paulo.

Como se Deus, desgostoso com a descendência de Adão, houvesse revogado o “Fiat Lux”. Como se Zeus, ao ver o que os homens tinham feito com o fogo roubado por Prometeu, apagasse o sol.

“O medo do Asterix era que o céu caísse sobre nossas cabeças,” —disse o meu amigo Ricardo, encarando o teto preto— “pois bem, caiu”. Eu tinha 41 anos. Meus filhos, seis e quatro.

Muitos interpretaram aquela treva diurna como um alarme, talvez o último antes da catástrofe climática, depois de uma série incontável de avisos em forma de secas e enchentes e degelos e furacões.

Olhando pela janela o céu escuro, ouvi a pergunta: “Se vocês sabiam o que estava acontecendo, por que não fizeram nada?”. Eram meus netos, trinta anos depois daquele breu —ou seja, hoje, em 2049—, revoltados com a herança deixada por nossa geração.

Suei ao nos imaginar em 2049 numa terra alguns graus mais quente, falta d’água do Oiapoque ao Chuí, a Amazônia em processo irreversível de savanização, calotas polares derretidas, vastas extensões tropicais inabitáveis, migração em massa, guerras, fome, malária, dengue e chikungunya matando da Patagônia à Dinamarca.

A noite no meio do dia me pareceu um sinal óbvio demais para ser ignorado: bíblico, hollywoodiano, chegava a ser clichê —e ainda bem que os clichês funcionam, pois naquele mundo tão torto, que ameaçava sair definitivamente dos trilhos, a sensatez surpreendentemente prevaleceu.

Acontece que os responsáveis pelo agronegócio brasileiro também tinham janela e perceberam que do jeito que a coisa ia seus produtos seriam boicotados, como os produtos da África do Sul durante o apartheid. (O termo “pária” pipocava na imprensa para descrever como o Brasil estava sendo visto internacionalmente).

Os industriais também tinham janela e perceberam que sem floresta não haveria água e sem água não haveria energia e sem energia não haveria indústria.

Também tinham janela os investidores do mercado financeiro, que se deram conta de que não haveria liquidez na savana e nem pregão no deserto.

Agosto de 2019 foi um ponto de inflexão. Os agricultores, os industriais e os investidores se juntaram aos 96% de brasileiros que, segundo pesquisa Ibope da época, diziam se importar com a preservação da Amazônia e decidiram peitar o tétrico governante que havíamos eleito em 2018.

Durante os próximos três anos e meio, conseguimos barrar institucionalmente a piromania —simbólica e literal— com que o homúnculo desvairado vinha incendiando o país, em todas as áreas.

Não foi fácil. O Brasil saiu chamuscado, arranhando, exausto, mas sobreviveu. O novo governo eleito em 2022, um governo de coalizão e reconstrução, retomou e melhorou as políticas protecionistas que vinham sendo criadas desde o governo Sarney, paulatinamente aperfeiçoadas nos governos Collor, FHC, Lula e Dilma. A Amazônia sobreviveu.

Verdade que o mundo hoje é bem diferente daquele no qual eu nasci; o estrago já era grande em 2019.

Meus netos só conhecem abelhas e borboletas dos livros, de filmes e da realidade virtual e quando contei pra eles a história do Titanic, ficaram bem menos impressionados com o destino do navio do que com a descrição de um iceberg.

Estamos vivos, porém. Somos livres. Seguimos na luta. Hoje faz sol e o céu é azul.

Antonio Prata 
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

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