O grande momento de inflexão da política brasileira recente não foi a eleição de Bolsonaro. Foi o golpe de 2016.
O golpe colocou em marcha a criminalização da esquerda, a macarthização da vida política, a instrumentalização aberta do aparelho repressivo de Estado e a tolerância ou mesmo estímulo à agressividade da direita radicalizada, elementos sem os quais não seria possível a vitória de Bolsonaro nas eleições ilegítimas de 2018.
O grande problema do golpe sempre foi como encontrar o caminho para sua normalização. Isto é, como deixaria de ser o ato de força que foi e teria seu legado (em retrocesso de direitos, redução do Estado e rompimento de políticas igualitárias, desnacionalização da economia) incorporado de vez à vida nacional.
No sonho dos golpistas, a normalização se daria com a eleição de Alckmin em 2018: um conservador que encarnava o programa dos retrocessos, mas que receberia o aval das urnas. O eleitorado, porém, não se dispôs a cumprir seu papel nesse script.
Quando ainda julgava que poderia ser candidato, o próprio Lula acenou com a possibilidade de uma normalização pactuada. Abraçava-se com políticos que tinham apoiado a derrubada de Dilma, falava em "perdoar" os golpistas e, sobretudo, indicava que estava disposto a se adaptar ao novo cenário, buscando uma reedição do pacto lulista, de manutenção dos privilégios com políticas compensatórias para os mais pobres, dentro dos limites ainda mais estreitos que a classe dominante concedia.
Como sabemos, os vitoriosos do golpe de 2016 não estavam dispostos a ceder um milímetro. E responderam a Lula com uma escalada de violência, tanto física - não esqueçam dos atentados contra a caravana - quanto institucional, culminando em sua prisão ilegal.
Sobrou a dupla Bolsonaro-Guedes, que fez com que o golpe se desdobrasse numa forma de pinochetismo. Tratava-se de impor reformas estruturais brutais, em prejuízo da vasta maioria da população, graças à disponibilidade do Estado para o uso da força.
Esperava-se que, como no Chile, quando o autoritarismo fosse superado, as reformas ultraliberais não teriam mais condições de ser desafiadas, mesmo que subissem ao poder governos nominalmente de esquerda. (Lá, foram quase 30 anos, incluindo dois governos "socialistas", antes que a sociedade tivesse forças para se mobilizar contra a herança do período Pinochet.)
Com a pandemia, o governo Bolsonaro se tornou tóxico e mesmo Guedes, cuja incompetência como gestor econômico não pode mais ser disfarçada, ficou menos atraente. O desembarque do caminho pinochetista está tendo que ser antecipado.
É isso que está em jogo na definição do caráter do movimento "amplo" contra Bolsonaro.
Há quem aponte claramente na direção de uma normalização pós-bolsonariana, como se retirá-lo do cargo esgotasse nossa agenda. Tiramos Bolsonaro e seguimos em frente, com CLT despedaçada, desigualdades ampliadas, Estado subfinanciado, Lula condenado por uma conspiração judicial etc. etc.
É o que transparece no texto do manifesto do "Juntos" e na pressão pelo silenciamento das posições de esquerda em tantos grupos.
Tirar Bolsonaro, tudo bem. Mas desde que não se fale sobre direitos trabalhistas, desmandos da Lava Jato ou imposto sobre fortuna. E que no pacote estejam "defesa da lei e da ordem" (e da família), "responsabilidade na economia" etc. etc.
"Somos 70%" é um slogan motivacional, que apenas indica que há uma maioria hoje contra o governo Bolsonaro. É ótimo que essa maioria exista e qualquer um que queira se juntar à tarefa de derrubar o sociopata do poder deve ser bem vindo.
Mas não dá para, em nome desse objetivo pontual, silenciar as reivindicações democráticas e igualitárias do campo popular e compactuar com a normalização dos retrocessos. Somos 70% hoje, mas não vamos virar as costas para os 99% que somos sempre.
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