Luis Felipe Miguel
A Folha anunciou hoje suas duas novas colunistas. É parte do esforço de dar mais diversidade de gênero ao prestigiado espaço da página A2.
Uma é Gabriela Prioli, que eu só conheci há pouco e que, até onde posso ver, é uma liberal sincera. Outra, uma ilustre desconhecida para mim, é apresentada como professora de um curso do Instituto Mises.
Uma neofeudalista, portanto. Uma fundamentalista de mercado.
A tal "escola austríaca" é a corrente de pensamento mais sobre-representada nos jornais brasileiros. Na academia, é considerada quase unanimemente uma piada. Na política, é quase irrelevante - seus porta-vozes se tornam rapidamente neoconservadores tradicionais, quando não linhas auxiliares do fascismo.
Repetindo os pais fundadores da doutrina, aliás, que não podiam ver passar um Mussolini ou um Pinochet que já queriam abraçar.
Mas, só na Folha, o neofeudalismo tem boa parte dos colunistas econômicos, no caderno de política tem o filho do Giannetti, tem um simpatizante ostensivo na figura do Schwartsman... Sem falar nos articulistas eventuais.
Não é por acaso. É a corrente que expressa os interesses da burguesia da maneira mais pura, mais radical (e também mais míope, devo acrescentar).
Do outro lado está o marxismo, que recebe um veto quase absoluto da imprensa.
Para destacar seu "pluralismo", peça central de seu marketing, a Folha dá espaço a algumas vozes progressistas. É um espaço racionado, mas é importante que exista. O marketing dá certo: o bom uso que várias dessas pessoas fazem dessa brecha é um dos motivos pelos quais eu, por exemplo, continuo lendo a Folha.
Há comentaristas políticos com elevada visão crítica, colunistas keynesianas, pessoas alinhadas ao PT. Há colunistas com foco na agenda feminista, na agenda antirracista, na agenda ambiental. Há espaço até para filósofos pós-estruturalistas de discurso muito radical.
Mas marxistas? Bem raro. Como dizia uma antiga blague, "é mais difícil do que encontrar um negro num filme do Woody Allen".
O fato é que o marxismo continua a assustar. Há um esforço gigantesco para descartá-lo in totum, defini-lo como ultrapassado e irrelevante - e, enfim, silenciá-lo ou insulá-lo num gueto.
Num campo conservador como a Ciência Política, o marxismo brilha por sua ausência dos cursos. Um selo de "Marxism-free" é exigido de boa parte das produções intelectuais da área. É comum que revistas acadêmicas devolvam artigos recusando-os por usar um "referencial teórico estranho à disciplina", por vezes sugerindo expressamente que o texto seja "enviado a uma publicação marxista".
Mas uma Ciência Política que rejeite o marxismo já anuncia uma compreensão profundamente limitada do que é a política.
Por outro lado, tem marxistas que também não ajudam.
Nesses dias, chegou ao meu conhecimento o comentário público, numa rede social, de um ex-aluno - uma pessoa, convém esclarecer, inteligente, bem-intencionada e com quem mantenho uma boa relação. Ele dizia que não existiam marxistas na Ciência Política da UnB e, então, me definia como "liberal de esquerda".
Até aí, tudo bem. Marx e a tradição marxista foram fundamentais na minha formação e continuam sendo centrais, embora não exclusivas, para minha reflexão. Mas não brigo para ostentar qualquer rótulo. Esse "ser ou não ser” não é, para mim, uma questão importante.
Na verdade, estou acostumado a ser considerado demasiado marxista, logo irrelevante, pelo mainstream da Ciência Política e demasiado não-marxista, logo desinteressante, pela maior parte dos meus colegas marxistas.
Também não reclamo do "liberal". Eu mesmo me defino como liberal, meio brincando, meio a sério, na medida em que julgo que a tarefa dos movimentos emancipatórios não é descartar, mas dar substância aos ideais igualitários e libertários que o liberalismo enuncia mas não é capaz de realizar.
A questão é que, em seguida, meu não-marxismo e meu liberalismo são definidos pelo fato de que eu, preso a uma “negação idealista”, não apoio o regime da Coreia do Norte.
Esse é o lado mais triste da voga neostalinista. Vivemos um momento em que a esquerda parece acuada, com pouca iniciativa. E o esforço de alguns é, em nome de uma pretensa ortodoxia, transformar a tradição marxista - que continua sendo fundamental para o pensamento de esquerda - numa caricatura bizarra.
Uma corrente teórica que se definisse pelo apoio a uma ditadura hereditária grotesca certamente seria tão irrelevante para o debate sério quanto o neofeudalismo do Instituto Mises.
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