Conrado Hübner Mendes
Há responsáveis por mortes que não precisavam ter sido, e um responsável maior
Jair Bolsonaro fabricou muitas batalhas nessa pandemia: da economia contra a vida; da cloroquina contra a vacina; da liberdade contra as máscaras; do pensamento mágico contra a ciência. No campo dos fatos, perdeu todas. No da fantasia, insiste em todas. Na política, restou-lhe acossar STF e Congresso, culpar estados e municípios, e insinuar intervenção milico-miliciana para livrar-se ileso dos danos gerados por sua conduta.
Os danos mensuráveis estão na mesa: 430 mil mortes e 15 milhões de contaminações (sem contar subnotificação); empobrecimento, fome e economia retardatária no processo de recuperação mundial; colapso em saúde e educação, com danos irreversíveis na formação de crianças e jovens (ensino remoto ainda foi pretexto para cortar investimentos, enquanto parte do mundo os ampliava). Os danos incomensuráveis se observam em sofrimento e indignidade.
Passaremos décadas discutindo quem deveria pagar pelo quê: as responsabilidades jurídicas, tanto criminais (com cadeia) quanto civis (com reparação do dano); as responsabilidades políticas e morais dos protagonistas e cúmplices, dos colaboradores, omissos e beneficiários. Se formos maduros para conceber responsabilidades para além dos indivíduos, emergirá a consciência de culpa coletiva e um movimento “nunca mais”.
O exercício de atribuição de responsabilidades jurídicas tem uma parte difícil e uma fácil. A difícil é que o desastre se produz por uma combinação de falhas de Estado e falhas de governo em todos os níveis da federação, e de culpas individuais, públicas e privadas. A parte fácil é que, entre as culpas individuais, há uma culpa cintilante. Não se encerra com Bolsonaro, mas começa com ele e fica ali um bom tempo.
De tudo que Bolsonaro disse nesse período, uma frase se sobressai pelo poder de síntese e riqueza das suposições: “Pode ser que seja placebo, mas pelo menos não matei ninguém”.
A frase contém uma confissão e uma teoria da responsabilidade. A confissão é dispensável, pois há provas torrenciais da sua ação e inação deliberadas; a teoria não tem lastro jurídico, pois “matar” não se limita ao ato físico de puxar o gatilho de fuzil com mira certa, tal como seus desejos de “metralhar” ou “fuzilar” desafetos. No universo normativo de Bolsonaro, não existe o matar à distância, por descumprimento de deveres. Para o direito, existe.
Tão óbvio quanto dizer que Bolsonaro não é único responsável pelo morticínio é notar sua responsabilidade primordial. Não menos evidente descobrir que, por tudo que fez e deixou de fazer, causou milhares de mortes e milhões de contaminações evitáveis. A causalidade está fora do terreno da dúvida. A intencionalidade transborda em discursos e atos não só contra vacina, testagem, isolamento e máscara, mas em favor de charlatanismo por lucros escusos.
Quem quiser se aprofundar nas causalidades, pode ler, além de estudos brasileiros, numerosas publicações nas grandes revistas científicas do mundo, como Science, Nature e Lancet. Quem preferir buscar intencionalidades, vale começar pelos boletins “Direitos na Pandemia”, produzidos por Cepedisa (USP) e Conectas. Se quiser comparar com experiências jurídicas do mundo, navegue na plataforma “Lex-Atlas: Covid-19” (King’s College de Londres).
Ninguém tem poderes jurídicos, verbais e simbólicos comparáveis ao presidente da República para influenciar ou ordenar o comportamento social.
Sua omissão descumpriu deveres constitucionais. Mas não foi só omissão. Consciente das mortes que causaria, agiu para inviabilizar e tumultuar medidas sanitárias de senso comum. Usou do inigualável poder da caneta e da palavra presidencial para semear dúvida, espalhar desinformação e incitar violação da lei. Quantos crimes cabem nessa conduta?
A pergunta não é retórica. Não se responde só pelo fígado ou pela intuição moral. Precisa ser qualificada pela análise jurídica. A montanha de evidências de conduta criminosa não cabe embaixo do tapete. Uma carreira forjada na delinquência e premiada pela impunidade, que já produziu tanto dano material e imaterial, podia pelo menos terminar em sanção. Injusta por ser tão tardia, nem por isso menos correta e urgente.
Ou o país pode optar por outra anistia geral e irrestrita. Os torturadores e seus ministros herdeiros continuarão soltos inventando técnicas de tortura e de sumiço de corpos. Já não estão só brincando de anticomunismo iletrado no clube militar, esse parquinho dos órfãos da guerra fria.