José Eduardo Agualusa
Em visita à Argentina, Ernesto Araújo terá confessado a sua propensão para ser um personagem de Jorge Luis Borges. Acrescentou ainda que também Jair Bolsonaro poderia ter inspirado um conto de Borges, com o título “Deus em Davos”, esclarecendo que talvez o presidente brasileiro tenha sido o primeiro mandatário que pronunciou a palavra Deus no famoso fórum. Finalmente, confessou que desde que conheceu a obra do escritor, convive com Borges “como um mestre, eu diria, pretensiosamente, como um amigo, um pai espiritual”.
Parece-me uma afirmação ousada e a merecer alguma reflexão, pois poderá ajudar-nos a conhecer um pouco melhor o pensamento secreto do chanceler brasileiro. Que Borges terá escolhido ele para pai espiritual?
O que defendeu Israel durante a guerra dos seis dias ou o que produziu sentenças terríveis contra aquele mesmo país? Lembro apenas esta: “Estive duas vezes em Israel e, infelizmente, notei que são quase hitlerianos. A diferença é que eles não insistem na ideia de raça germânica mas na do povo judaico. A ideia do povo escolhido da Alemanha nazi não é outra coisa que a do povo escolhido dos hebreus, que Hitler tirou da Bíblia.”
Ou será que Ernesto Araújo escolheu antes, como pai espiritual, o Borges reiteradamente racista? Por exemplo, o que repetidas vezes protestou contra a educação dos negros: “Não me arrependo do que tantas vezes afirmei: os norte-americanos cometeram um grave erro ao educá-los; enquanto escravos eram como crianças, eram mais felizes e menos daninhos.”
Há ainda o Borges que troçava da democracia, definindo-a como uma superstição baseada na estatística. Finalmente, temos de considerar a possibilidade de que Ernesto Araújo se reveja no Borges ateu e anarquista, com um horror profundo a fronteiras e passaportes. Parece-me improvável, mas não sabemos.
Por outro lado, o que nos diz sobre Ernesto Araújo a confissão de que poderia ser um personagem de Borges? Sabemos que o escritor argentino gostava de personagens bizarros, como Funes, o memorioso, mas também de demiurgos, de escritores fictícios, de tigres, de traidores, de rufias e de canalhas. Não sei muito bem em qual destas categorias o chanceler brasileiro se revê. Tenho até medo de saber.
Quanto à afirmação de que Jair Bolsonaro poderia ter inspirado um conto de Jorge Luis Borges estou completamente de acordo. Predomina em todo o processo de ascensão política de Bolsonaro um ambiente de absurdo, e até de um certo realismo mágico, na sua versão distópica, muito próximo do universo borgiano. Borges gostaria, por exemplo, do episódio da facada (há muitas facas e algumas facadas na obra dele). Fascinado por coincidências e por matadores profissionais, também apreciaria o caso do pistoleiro que era vizinho do Presidente da República.
“Deus em Davos” daria um belo título, sem dúvida. Borges saberia explorar a ácida ironia de ter alguém como Jair Bolsonaro citando o nome de Deus no templo dos vendilhões.
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