Não queria falar da Tabata Amaral, mas vou. Não a conheço e acompanho pouco sua atuação. No agora célebre embate com Vélez Rodríguez, vi uma moça inteligente e articulada tripudiando de um cidadão absolutamente desqualificado para o posto que ocupa. Mas o subtexto me pareceu uma visão 100% tecnocrática não só da educação, mas da ação governamental em geral - o que, aliás, é condizente com a trajetória da deputada, que é fruto dos programas empresariais de cooptação de talentos. Diz-me com quem lemanns que te direi quem és, não é mesmo?
Não vi, no embate com o ministro, a verbalização de nenhum compromisso com um projeto de educação pública ou emancipadora. Faltavam "metas", só isso. Não me espantei ao descobrir, depois, que a jovem deputada é uma das defensoras do homeschooling na Câmara, ao lado de fundamentalistas religiosos e reacionários delirantes. Amaral pode ser uma possível aliada contra alguns dos aspectos mais aberrantes do governo Bolsonaro e nada além disso.
Recuo de minha decisão de não falar dela porque, depois do episódio com Vélez, Amaral se tornou o modelo para ataques contra a esquerda: o modelo de "como a esquerda deve se comportar" (que em geral tem como preceito principal deixar de ser esquerda). Já vi mais de um apresentando seu discurso como um exemplo a ser seguido, um exemplo de crítica feita "sem ideologia", portanto mais eficiente. Como "sem ideologia"? O autodiscurso do tecnocratismo já é assumido de partida. Sim, temos que criticar a incompetência criminosa do MEC bolsonariano, mas nem por isso podemos deixar de disputar o projeto de educação do Brasil.
Hoje, na Folha de S. Paulo, é a vez de Mathias Alencastro, que compara Tabata Amaral a Alexandria Ocasio-Cortez. Amaral teria mostrado que se ganha muito mais "afrontando o governo com dados e ideias" em vez de "bravatas e digressões", uma frase que estigmatiza, de forma no mínimo irresponsável, quem estuda os problemas da educação brasileira e, ao mesmo tempo, enaltece a falta de crítica aos enquadramentos dominantes como "dados e ideias". Quem critica "ascensão" da deputada paulista, prossegue o colunista, faz parte do grupo dos "mais primitivos esquerdistas brasileiros". Tenho certeza de que é a minha turma.
Entre Amaral e Ocasio-Cortez, há de fato algumas semelhanças: mulheres, jovens, oriundas de espaços distantes da elite, articuladas, espertas. As semelhanças param por aí - e, para quem pensa a política como mais do que uma pretensa afirmação identitária, elas são bem superficiais. Ocasio-Cortez tem contribuído para politizar o debate nos Estados Unidos, ao passo que o discurso tecnocrático de Amaral tem o sentido oposto. Ocasio-Cortez se formou como ativista política, enquanto Amaral passou por uma incubadora empresarial. Com posições bem mais progressistas do que sua pretensa símile brasileira, Ocasio-Cortez tem contribuído para fazer o Partido Democrata ir um pouco mais à esquerda, ao contrário de Amaral, que está na direita de um partido complicado como o PDT.
Quero deixar claro que, ao contrário de muita gente por aqui, não sou um entusiasta de Ocasio-Cortez. Os limites de sua ruptura com o establishment estadunidense são claros, como mostra o apoio que ela dá ao golpe na Venezuela ou o recuo em seu compromisso com o povo palestino. Na esquerda dos EUA, ainda fecho é com a Pamela Anderson. Mas Ocasio-Cortez, em que pesem estes limites, é muito mais do que um ícone de "renovação" e "empoderamento". Ela representa claramente um avanço político. Amaral, com certeza, não.
[Atualização: eu havia dito que Amaral era "entusiasta" do homeschooling. Como a deputada nos últimos dias tem feito questão de se distanciar do tema, inclusive negando que estivesse para assumir a vice-liderança da frente parlamentar pelo ensino doméstico, troquei para "defensora", o que ela não nega ser.]
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