Christian Dunker
Desde que a balbúrdia tornou-se método de governo, a retórica dos cortes foi elevada a um novo nível ideológico. Digo isso como vice-chefe do departamento de Psicologia Clínica da USP, tendo que explicar a meus alunos se eles vão ou não ter suas bolsas de mestrado ou doutorado no semestre que vem.
Digo isso pensando nos ratos, pombos e cães empregados pela pesquisa em Psicologia Experimental e que tiveram que ouvir, de nosso ministro da educação: esperem até setembro para comer de novo. Balbúrdia vem do grego “balbus” que quer dizer gago ou estrangeiro que fala em uma língua que não entendemos.
Quando examinamos de perto o esclarecimento do ministro Weintraub sobre a redução de 3,4% na verba contingenciável para as universidades temos um exemplo atual de balbúrdia como paradigma da falta de rigor.
Seguindo a enunciação popularizada pelo PowerPoint de Dallagnol e consagrada pelos memes baseados em “quer que eu desenhe?”, Weintraub se põe a demonstrar para as massas ignaras, que comem kafta mas não leem Kafka, o que o governo está a realizar. Sim, é neste lugar que você é posto quando alguém traz uma centena de chocolates, diante das câmeras, para fazer você ver quão pouco são 3,5 deste montante. Perfeita coesão entre forma e conteúdo.
Como não pensar nas universidades como ícone da gordura, antípoda do regime alimentar equilibrado e alegoria da massa adiposa que deve ser cortada?
Em meio ao desemprego e ao colapso econômico, que não pode mais ser atribuído ao PT, quem não pode esperar para comer o marshmallow não são os bancos, nem as lagostas do STF, mas... os professores. Todo plano perfeito tem um pequeno detalhe que põe tudo a perder.
Na pirotecnia de Weintraub sobra a metade de um chocolate, cortado ao meio para criar o efeito de exatidão. Aqui o psicanalista não deixará de perceber um enunciado denegatório. Enquanto diz que não vai cortá-lo, ele parte o doce em dois, dizendo uma coisa e fazendo outra, ao vivo e em cores.
Contradição que Freud examinou ao analisar o caso do sujeito que diante de uma mulher em seu próprio sonho diz, de forma exaltada e reativa: não é minha mãe (o que permite imediatamente inferir que se trata da própria). Este resíduo da conta, esta metade sobrante da operação, que Lacan tematizou com a noção de objeto a, é a prova do truque mal feito.
Rastro que o criminoso deixa na cena do crime para ser pego e satisfazer seu sentimento inconsciente de culpa. Aquele estranho pedaço, com o qual não sabemos o que fazer, porque ele denuncia o conjunto sórdido do conjunto da operação, é o pequeno indício de uma grande corrupção.
Qual não é nossa surpresa quando vemos esse resto ser comido pelo próprio presidente em evidente e luxuriosa ganância. O comentário não poderia doer mais aos ouvidos de qualquer psicanalista: “homem dando chocolate para homem”. A piada de tonalidade homossexual coloca a céu aberto o pensamento sexualizado dos envolvidos.
Freud escreveu livro sobre este tipo de anedota para mostrar como é nessas pequenas piadas que se dizem grandes verdades. Afinal quem pensaria, vendo um homem tomando um pedaço de chocolate do outro, em... sexo?
Claro que, como psicanalistas, não estamos autorizados a interpretar ninguém fora da transferência e da associação livre daquela própria pessoa. Mas é um exercício medieval de autocontenção acompanhar a balbúrdia discursiva de Bolsonaro e seus ministros.
Atos falhos contínuos, sexualização errática, declarações em permanente denegação, ambiguidades incompreensíveis e paródias involuntárias de si mesmo. Nesse contexto, as perguntas mais óbvias da imprensa tornam-se potenciais interpretações clínicas. Por exemplo, diante de um erro crasso, que troca 500 milhões por 500 mil, custo da avaliação do Saeb, o ministro responde afirmando é isso mesmo, porque ele é capaz de “fazer mágica”.
Quando vem a público para mostrar que os 30% de cortes em verbas não obrigatórias para educação representam, na verdade, 3,5% de cortes no montante geral dos gastos com universidades, sua confusão retórica é evidente.
Sem um tradutor intérprete, especialista no idioma bolsonariano, o nosso professor de notas medíocres e sem doutorado, engendra o efeito cômico de que 30% de 100 seriam algo como 3, e não 30 unidades. Um ministro da Educação que em vez de Inep é inepto segue rigorosamente a retórica da balbúrdia que elegeu seu chefe: inconsequência com a palavra, confiança na desmemoria e corrupção interesseira da história.
Se há método nesta loucura, é certamente o método da balbúrdia.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP
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