A esquerda e o impeachment de Bolsonaro
Luis Felipe Miguel
Nos últimos dias, Bolsonaro promoveu uma escalada em sua diarreia verbal. Foram agressões e ameaças a jornalistas e cientistas, defesas abertas da captura privada da coisa pública, manifestações de estupidez quase inimaginável, mentiras deslavadas e demonstrações brutais de desumanidade.
Os dois casos talvez mais chocantes - é difícil fazer uma escolha - mostraram, nos seus desdobramentos, um padrão de comportamento abjeto que é característico de Bolsonaro.
A fala racista contra os nordestinos foi captada sem que ele soubesse, mas ele se recusou a qualquer pedido de desculpas. Depois abordou indiretamente o tema com a lembrança hipócrita dos ancestrais de sua mulher.
A declaração agressiva sobre o pai do atual presidente da OAB novamente não levou a nenhuma retratação, mas ao vídeo em que improvisou uma explicação farsesca sobe o que estaria querendo dizer.
É difícil saber se o ex-capitão persegue alguma estratégia ou simplesmente está se sentido mais solto. Seja como for, é grande o desconforto de seus aliados envergonhados, na elite política e na mídia. E voltou-se a falar de impeachment.
É uma ideia que parece ganhar trânsito entre parlamentares do Centrão, chefes militares e colunistas da imprensa conservadora.
Afinal, o crime de responsabilidade está caracterizado com clareza - ao contrário do que aconteceu no caso da presidente Dilma Rousseff, aliás. "Quebrar o decoro" é a atividade principal de Biroliro.
Há um debate aberto na esquerda sobre o que fazer com essa bandeira. Um impeachment significaria, na prática, entregar a presidência ao general Mourão: não, não há previsão constitucional de convocação de novas eleições, mesmo que o impedimento ocorra no início do mandato, já que as ações imputadas não envolvem o vice.
Mourão aprendeu a se conter quando fala. Deixou no passado suas declarações racistas, não perde tempo com a "guerra cultural" que anima Bolsonaro, parece surpreendentemente sensato e até amistoso.
Seria um presidente muito melhor: sobretudo para implantar a agenda de retração de direitos, paulada na classe trabalhadora e entreguismo, que é a dos apoiadores envergonhados do atual governo.
Isso não quer dizer que a retirada de Bolsonaro da presidência não faça qualquer diferença. Alguém que entende que não pode parecer racista, homofóbico, misógino ou apologeta da tortura em público é melhor que alguém que não entende isso.
Também não creio que tenha sentido pensar que é melhor deixar Bolsonaro "se desgastar" no cargo. Vamos aguentar mais quantos anos disso? Com qual custo?
E ele não está "se desgastando" ou, ao menos, não está só se desgastando: está consolidando uma vasta extrema-direita hidrófoba, capturando parte do Estado em favor de seus milicianos e aviltando ainda mais a convivência política no Brasil.
É difícil, portanto, ser contra a retirada de Bolsonaro da presidência.
Isso significa que o campo democrático e popular deve aderir à bandeira do impeachment? Também creio que não.
Nossa oposição à falta de compostura de Bolsonaro é una com nossa oposição ao desmonte do país e ao sacrifício do povo. Ficar a reboque da semi-oposição conservadora é aceitar uma hierarquia de prioridades que não é a nossa.
Há elementos mais do que suficientes para defender a anulação das eleições de 2018 - cuja legitimidade foi ferida de morte não só pelo golpe de 2016, mas também pela conspiração levada a cabo por Sérgio Moro e por integrantes do MPF para impedir que a vontade popular se manifestasse nas urnas. Lembrando, aliás, que as ações mais recentes do ex-juiz só podem ser interpretadas como uma confissão de culpa.
Defender a anulação das eleições de 2018 é a única maneira de defender a retomada da democracia e a retirada das tutelas vigentes sobre o exercício da soberania popular. Não se opõe ao impeachment de Bolsonaro, mas vai muito mais além.
Alguém pode dizer que não há clima político para uma campanha pela anulação das eleições. Mas se nós não colocarmos a bandeira na rua, nunca haverá.
A movimentação pelo impeachment de Bolsonaro, por parte dos conservadores constrangidos com a brutalidade de seu presidente, pode ser a oportunidade para lançar a defesa da anulação das eleições.
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