Após atuação em protesto, Bolsonaro já soma 15 casos com possível crime de responsabilidade
Atitudes se enquadrariam como afronta à Constituição e quebra de decoro, infrações que poderiam motivar pedido de impeachmentDaniela Arcanjo e Flávia Faria
Ao incentivar e participar de ato contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal no último domingo (15), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acumulou mais um item a uma já longa lista de situações em que crimes de responsabilidade podem ter sido cometidos por ele na Presidência da República.
A Folha listou ao menos 15 exemplos desde janeiro do ano passado.
Para além da participação nos protestos, o presidente já deu declarações falsas, insultou jornalistas e tomou medidas que contrariam princípios da Constituição, como uma ameaça de fechar a Ancine caso não fosse possível “filtrar” o conteúdo das produções apoiadas pela agência de cinema —o que poderia ser entendido como tentativa de censura.
Situações do tipo podem vir a ser enquadradas nas definições legais de crime de responsabilidade. No caso do presidente, tentar ou cometer um crime dessa classe pode levar à perda do cargo, que ocorre por meio de um processo de impeachment.
A previsão legal para isso consta da Constituição Federal e de uma lei de 1950.
Pela legislação, cabe ao Congresso autorizar a abertura de um processo de impeachment, e o julgamento que decide se houve crime de responsabilidade acontece no Senado.
No domingo passado, ao participar do protesto a favor do governo, Bolsonaro contrariou recomendações do Ministério da Saúde para evitar aglomerações em meio à crise do coronavírus e, ao mesmo tempo, atuou ao lado de manifestantes com placas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo e na defesa da volta do AI-5, ato da ditadura que fechou o Congresso e suspendeu direitos.
A atitude de Bolsonaro foi condenada pelos presidentes Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado) e também por uma série de congressistas aliados e da oposição.
A deputada estadual de São Paulo, Janaina Paschoal (PSL), por exemplo, disse que Bolsonaro deveria deixar a Presidência por ter exposto a população a risco de se contaminar. Ela é coautora do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT) e chegou a ser cotada para o posto de vice na chapa que elegeu Bolsonaro em 2018.
Na última semana, por causa de seus repetidos sinais de menosprezo à crise do coronavírus, Bolsonaro ainda assistiu a uma debandada de apoiadores liberais, além de panelaços em protesto ao seu governo.
“Nunca abandonarei o povo brasileiro, para o qual devo lealdade absoluta! Boa noite a todos!”, escreveu Bolsonaro em mensagem publicada nas suas redes sociais na quinta-feira (19).
Nas redes sociais, o presidente também vem enfrentando desgaste entre perfis mais identificados com o centro. Segundo levantamento da Folha, das cinco mensagens que mais circularam entre usuários de centro no Twitter na semana passada, quatro também estiveram entre as mais compartilhadas na esquerda.
Em outra análise, a consultoria Quaest verificou que cresceu rapidamente na rede social o uso das hashtags #ForaBolsonaro, #ImpeachmentdoBolsonaroUrgente e #AcabouBolsonaro.
Na terça-feira (17), chegou à Câmara o primeiro pedido de impeachment protocolado contra o presidente depois dos protestos do dia 15.
No mesmo dia, o Ministério Público pediu ao TCU (Tribunal de Contas da União) que apure se Bolsonaro cometeu crime ao possivelmente infringir o artigo 268 do Código Penal (“infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”) e contrariar princípios constitucionais sobre como agentes públicos devem atuar na defesa da saúde pública.
Não há consenso entre especialistas se a questão ligada à saúde se enquadraria em crime de responsabilidade, visto que não havia lei proibindo manifestações ou atos públicos em razão da epidemia, apenas recomendação.
Alguns advogados também afirmam que, para haver delito, seria preciso comprovar que Bolsonaro teve a intenção de propagar o vírus.
Por outro lado, a participação em ato contra os Poderes poderia ser enquadrada como crime de responsabilidade. Segundo a Constituição Federal e a lei 1.079/1950, são crimes do tipo os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra “o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário”.
De acordo com Rubens Glezer, professor da Escola de Direito da FGV de São Paulo, a relação de hostilidade entre presidente e Legislativo é um sinal de alerta em países latino-americanos.
“Uma boa relação desde o início tende a evitar a ocorrência [de impeachment], mas a incapacidade de governar e um Congresso hostil ou hostilizar o Congresso abrem a possibilidade. A tentativa de hostilizar o Congresso historicamente dá errado para os presidentes da América Latina.”
No caso de Bolsonaro, a relação com o Legislativo é tensa desde o início do governo, com fortes críticas dos parlamentares à articulação política do Planalto. Bolsonaro já protagonizou bate-boca público com Maia, se disse refém dos parlamentares e acusou congressistas de adotarem práticas que costuma denominar de “velha política”.
Em 2016, Dilma sofreu impeachment por crime de responsabilidade contra a lei orçamentária, em razão das manobras no Orçamento conhecidas por pedaladas fiscais. Críticos do processo afirmam que outros presidentes utilizaram medidas similares sem que perdessem o cargo.
O governo Dilma, contudo, enfrentava grave crise econômica e política, com deterioração das relações entre Planalto e Congresso e manifestações nas ruas pedindo a saída da mandatária.
Embora o julgamento na Casa seja presidido pelo chefe do Supremo Tribunal Federal, cabe ao ministro apenas prezar pelo rito legal. São os parlamentares que definem se os atos julgados são, de fato, crime de responsabilidade.
Isso faz do rito do impeachment, na avaliação de especialistas, um processo com forte conotação política, ainda que tenha o componente jurídico trazido pela legislação.
Segundo advogados consultados pela Folha, a definição ampla trazida pela lei sobre o que vem a ser crime de responsabilidade possibilita a interpretação dos congressistas. A abertura do processo de impeachment, por sua vez, leva em conta o clima político no país.
Diego Werneck, professor de direito do Insper, afirma que essa configuração foi pensada para dar legitimidade. “Colocar tudo na mão do Supremo me parece uma péssima alternativa. Eles [os ministros] não têm necessariamente esse contato que os parlamentares têm com a sociedade nem são responsabilizáveis politicamente, por não terem voto”, afirma.
Ao falar de Bolsonaro, um dos artigos mais citados pelos especialistas é o que trata de quebra de decoro. A lei 1.079/1950 diz que é crime de responsabilidade contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Não há, porém, uma definição do que vem a ser decoro. Insultos ou mentiras, em tese, poderiam ser classificados assim, e há precedente em casos de cassação de deputados, a exemplo de Eduardo Cunha (MDB-RJ), em 2016.
Bolsonaro, por sua vez, pode ter incorrido no crime em mais de uma situação.
Em fevereiro de 2019, o presidente publicou em suas redes sociais um vídeo durante o Carnaval em São Paulo. Nas imagens, um homem aparece dançando sobre um ponto de táxi mexendo no próprio ânus. Na sequência, surge outro rapaz, que urina em sua cabeça.
Há também situações como a que insultou, com conotação sexual, a jornalista da Folha Patrícia Campos Mello ou quando usou informações falsas para atacar a colunista de O Globo Miriam Leitão, torturada pela ditadura militar.
Na opinião de Fernando Neisser, presidente da comissão de direito político e eleitoral do Instituto de Advogados de São Paulo, a quebra de decoro seria uma “ilicitude coringa”.
“Não dá pra definir [quebra de decoro]. É aquilo que o Parlamento entende que é. É um crime de responsabilidade coringa que serve para aquilo que o Parlamento quiser encaixar”, diz.
Para o professor de direito da USP Rafael Mafei, embora a definição trazida pela lei seja ampla, não é possível ao Congresso tratar ilegalidades corriqueiras como crime de responsabilidade.
“Para o tipo de violação de lei que é, digamos assim, corriqueira, existem mecanismos muito menos traumáticos do que o impeachment."
"Mas há algumas ilegalidades que têm um potencial de estrago tão grande, e uma incapacidade de serem impedidas por essas vias ordinárias, que ou a gente impede essa pessoa de continuar no cargo ou a gente vai assistir a essa pessoa destruir a integridade das nossas instituições. É para esse caso que o impeachment serve”, completa Mafei.
Da participação
em protesto anti-Congresso a insultos a jornalistas, são ao menos 15
as situações em que o presidente Jair Bolsonaro pode ter cometido crime de
responsabilidade.
A maioria dos casos envolve quebra de decoro ou afronta à
Constituição. A quebra de decoro ocorre quando a autoridade procede "de
modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
A norma, segundo o professor de direito da USP Rafael Mafei,
é um guarda-chuva que "visa garantir, nas palavras e ações do presidente,
limites de civilidade política".
Crimes de responsabilidade podem levar à abertura de um
processo de impeachment pelo Congresso. Especialistas afirmam, no entanto, que
a medida em geral depende do clima político no país.
Abaixo, veja situações que poderiam ser enquadradas como
crime de responsabilidade.
QUEBRA DE DECORO
O que diz a lei
É crime de responsabilidade contra a probidade na administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”.
Situações que poderiam ser enquadradas:
Golden shower
- Durante
o Carnaval de 2019, Bolsonaro publicou
vídeo em que um homem aparece dançando sobre um ponto de táxi
mexendo no próprio ânus. Na sequência, surge outro rapaz, que urina em sua
cabeça. O vídeo foi gravado em um bloco chamado Blocu, no centro de São
Paulo. O tuíte pode ser considerado incompatível com “a dignidade, a honra
e o decoro do cargo”.
Ataques a jornalistas
Em diversas ocasiões, Bolsonaro se referiu a jornalistas com ofensas e palavras pouco polidas.
- Ele
já mandou
uma repórter da Folha calar a boca,
- Disse
que um jornalista do jornal O Globo tinha
“cara de homossexual terrível”
- Disseminou informações
falsas em suas redes sociais sobre uma jornalista de O Estado de
S. Paulo
- Ofendeu
com conotações sexuais a jornalista da Folha Patrícia
Campos Mello. "Ela [repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo a
qualquer preço contra mim [risos]”.
- Usou
informações falsas para fazer ataques à colunista do Globo Miriam Leitão,
que foi presa e torturada na ditadura. "Ela estava indo para a guerrilha
do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois conta um drama todo,
mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira.
Mentira", disse, em julho de 2019.
ABUSO DE PODER
O que diz a lei
É crime de responsabilidade contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais “servir-se das autoridades sob sua subordinação imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o pratiquem sem repressão sua”.
Situações que poderiam ser enquadradas:
Exonerações
- Em
março de 2019, o fiscal do Ibama que multou Bolsonaro em 2012 por pesca
ilegal em área protegida foi
exonerado
- Em agosto, o diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Ricardo Galvão, foi exonerado após criticar Bolsonaro em entrevista. Ele havia sido atacado pelo presidente quando a instituição divulgou dados que apontavam o aumento do desmatamento na Amazônia.
ATENTAR CONTRA A CONSTITUIÇÃO
O que diz a lei:
São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra [...] o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais" das unidades da Federação. A lei também diz que é crime de responsabilidade contra a administração “expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição”.
Situações que poderiam ser enquadradas:
Comemoração do golpe
- Em
março de 2019, o presidente determinou que quartéis fizessem as “devidas
comemorações” ao aniversário de 55 anos do golpe militar de 1964.
- Também
já afirmou em mais de uma ocasião que não considera aquela tomada do poder
um golpe de Estado.
Segundo parecer do Ministério Público Federal enviado à
época, festejar “um golpe de Estado e um regime que adotou políticas de
violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais” é
incompatível com a Constituição e com o Estado democrático de Direito.
A lei também define como crime de responsabilidade “provocar
animosidade entre as classes armadas ou contra elas, ou delas contra as
instituições civis”.
Manifestações contra STF e Congresso
- No
último dia 15, o presidente incentivou e participou em Brasília de ato que
tinha como pauta a defesa do governo e fortes críticas ao Legislativo e ao
Judiciário. Houve manifestantes com placas pedindo o fechamento do
Congresso e do Supremo. Bolsonaro cumprimentou participantes e fez fotos
com muitos deles. Depois, subiu a rampa do Planalto, em certo momento sob
um coro que pedia a volta do AI-5, ato da ditadura militar que fechou o
Congresso e suspendeu direitos.
Ancine
- Em
julho, Bolsonaro ameaçou acabar com a Ancine caso não pudesse impor um
“filtro” às produções de cinema apoiadas pelo órgão. “Vai ter um filtro
sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos
a Ancine. Privatizaremos, passarei ou extinguiremos", disse. O caso pode
ser enquadrado como tentativa de censura, o que atenta contra o artigo 5º
da Constituição (“é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”).
Princípio da impessoalidade
- Em outubro,
a Presidência da República excluiu
a Folha da relação de veículos nacionais e internacionais
exigidos em um processo de licitação para fornecimento de acesso digital
ao noticiário da imprensa. Bolsonaro havia feito a ameaça dias antes, e já
deu inúmeras declarações atacando o jornal. A exclusão da Folha do
edital, depois revogado
pelo Planalto, pode configurar violação ao princípio constitucional da
impessoalidade na administração pública.
- O
mesmo pode ser dito do episódio em que Bolsonaro pediu
a empresários que não anunciem em veículos que fazem cobertura crítica
de seu governo, em fevereiro deste ano. Nesse caso, também é possível
citar um possível ataque ao princípio constitucional do direito à
informação.
- Outro
episódio que pode ser incluído é a mudança
na lógica de distribuição de verbas publicitárias para TVs
abertas. O governo passou a destinar os maiores percentuais de recursos
para Record e SBT —emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não
são líderes de audiência.
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