A insurreição institucional começou e pode desembocar na desobediência socialConrado Hübner Mendes
É nas circunstâncias extremas da história que nosso repertório sobre moral, política e direito entram em ebulição e se deixam testar. Noções como poder e soberania do povo, direito de resistência e legitimidade, democracia e justiça, vida e sobrevivência saem dos livros e nos forçam a tomar decisões sobre o curso da ação coletiva e individual.
Levam ao dilema mais aflitivo da filosofia política: quando tenho o direito de desobedecer? Quando esse direito passa a ser dever? Os manuais de direito não costumam dizer uma palavra a respeito. Para o jurista de manual a pergunta não seria relevante. É problema de polícia. Presume a obediência a leis e se limita a interpretá-las.
O que acontece quando o presidente pede para deixar morrer?
Jair Bolsonaro estarreceu o mundo nos últimos dias. De novo. É o único líder eleito que ainda não renunciou o negacionismo. Nega a gravidade da doença e a veracidade do número de mortes. Boicota ações sanitárias e contrata a industrialização da morte. Sai pelas ruas e gera aglomerações e contato físico. Pratica crimes comuns e crimes de responsabilidade à luz do sol.
Apostou todo seu capital no sucesso das ações de seu ministro da Saúde e dos governadores e prefeitos. Publicamente, porém, optou por agredi-los. Não hesita em colocar seu futuro político acima da vida de milhares de brasileiros e vende a ideia de que a economia não pode parar mesmo que morram pessoas “com alguma deficiência”.
A tese bolsonarista é refutada por extensa literatura econômica: se medidas sanitárias não forem respeitadas, o desastre será também econômico, mais profundo e duradouro. Crise econômica não é hoje uma escolha. A escolha está entre atravessá-la com mais ou menos mortes.
Para aliviar o sofrimento de populações em extrema pobreza, a renda emergencial paga pelo Estado é uma das medidas sugeridas. O Congresso brasileiro aprovou, mas o presidente ainda não deu a ordem de pagamento.
A desonestidade de Bolsonaro atinge o ápice da crueldade. Solicita que a população se sacrifique em nome de uma fantasia. Quer se parecer com um Henrique 5º, que na peça de Shakespeare convence o Exército inglês de que vale a pena lutar contra os franceses apesar da derrota certa. Ou com Churchill, que não escondeu que o Exército alemão era mais forte e equipado. Quer se vestir de herói maiúsculo, mas segue sendo do tamanho de Jair.
Para convencer o trabalhador brasileiro, ele mente. Não tem números, não tem estudos, não tem evidências. Tem apenas seu instinto de autossobrevivência. Chega a distorcer declaração de diretor da Organização Mundial da Saúde, favorável à quarentena, para proclamar que “a OMS se associa a Jair Bolsonaro”.
Nessa circunstância, a desobediência torna-se um dever, pelo fundamento que preferir: liberal, democrático, constitucionalista, constitucional, conservador ou cristão. De Hobbes a Arendt, de Locke a von Mises, de Rousseau a Hayek, de Wolstonecraft a Angela Davis, de Burke a Scruton, de Gandhi ao papa Francisco, qualquer um deles concorda que desobedecer é a alternativa que resta.
A insurreição institucional começou e acontece em três níveis: primeiro, de Judiciário e Legislativo, que vão tomando decisões contra o governo; segundo, no nível federativo, com prefeitos e governadores anunciando o não cumprimento de medidas federais; terceiro, em seu próprio ministério, com o surgimento da curiosa coalizão entre Guedes, Moro e Mandetta para reduzir o dano e prevenir o descalabro final.
Começou pela insurreição institucional, mas pode desembocar na desobediência social e individual. Quando chegar ao ponto da convulsão, haverá outras razões para não sair de casa.
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