quarta-feira, 21 de abril de 2021

Derrubar Bolsonaro para quê? Ou como matar a hiena e preservar as aves de rapina




Muitos já perceberam que a oposição ao governo Bolsonaro capitaneada pela mídia, em especial pelos veículos das Organizações Globo, é limitada ao presidente, sua família e determinados ministros, como das pastas da Saúde, Meio Ambiente e Itamaraty. A preservação do chamado Posto Ipiranga e de sua política econômica já ficou nítida para a maior parte dos analistas políticos.

Vivemos uma situação em que o desemprego, a retração econômica, a fome e a impossibilidade de milhões de famílias conseguirem sobreviver com o mínimo de dignidade saltam aos olhos. A pandemia que recrudesce esse cenário de terror – que já vinha se desenhando antes do vírus – não foi combatida com o rigor com que se defendeu o misterioso Teto de Gastos. Pelo contrário, boa parte das verbas disponíveis para o combate foi economizada para fazer caixa. Ainda assim, a construção do imaginário da opinião pública teima em separar os ideais de Guedes do horror a que estamos sendo submetidos.

Mas Guedes não é um horror em si. Ele só representa os grandes brasileiros, gordos e luzidios, que vêm se cevando enquanto falta pasto à gentalha comum. Se Bolsonaro é condenado por estupidez e maus modos, se ele mostra ao mundo nosso lado mais desagradável, se é a cara dos preconceitos arraigados em nossa classe média e da mediocridade neopentecostal do populacho, Guedes é o outro lado da mesma moeda. Não vai rir como uma hiena de caricatura criticando políticas sociais que alimentem a população, como fez Bolsonaro. Mas é o rosto de uma elite entreguista, rentista, que se orgulha de não pagar impostos, de não assegurar direitos e voz aos trabalhadores, de estimular a competição entre os que nada têm para sobreviver e de olhar para as ruas e ver uma enorme massa de escravos que pode vender sua força de trabalho por um prato de comida mal servido. Pensa da mesma forma, mas exibe seus bons modos à mesa.

A oposição consentida, a que surge nos noticiários televisivos e editoriais de jornais mumificados, resolveu eliminar o riso incômodo da hiena, mas preservar a rapinagem em curso. A supressão de políticas redistributivas e sociais, o desmantelamento do aparato estatal, a liquidação do patrimônio público são revestidas de modernidade e lógica. Mal são noticiadas. São substituídas nos jornais pela benevolência e pela solidariedade dos grandes. Os mais ambiciosos vêm se aproveitando bem deste momento, liderando as pautas e orientando a mídia.

A filantropia, a solidariedade entre os que pouco e nada têm, a consciência social do empresariado, o empreendedorismo e ações pontuais patrocinadas por mecenas irão nos salvar, proclama a mídia. Não precisamos de um Estado, não precisamos de políticas públicas, não precisamos sequer de um País. Temos megaempresários que estão moralizando a política e a sociedade civil brasileira. Um deles adquire empresas enquanto forma parlamentares jovens e lideranças da sociedade civil que comungam da mesma visão de mundo – que, no fundo, é um “cada um por si”, “quem tiver sorte e mérito que se garanta”, “não vai dar para todo mundo”, paciência. Suas marionetes eleitas garantem que a mercantilização de serviços públicos essenciais seja garantida. Suas ações na sociedade civil garantem que o bilionário “já foi às favelas”, conhece os problemas nacionais e patrocina “mentes brilhantes” com titulação acadêmica financiada para resolvê-los.

Outra megaempresária parece ter apetites mais imediatos. Engole empresas que quebraram na crise, flerta com pautas identitárias caras à mídia e aos “movimentos”, desenvolve uma cartilha de “consciência social das empresas”. Enquanto isso, influi na futura reforma tributária para garantir menos impostos aos mais ricos, lidera movimento de privatizações junto às corporações e ao governo, aproveita-se das condições precárias de emprego geradas pelas reformas pós-golpe, planeja o bote sobre os escombros das estatais e contribui para a imagem de modernidade das mudanças em curso. Para completar, agora adquire veículos de comunicação, mantendo uma velha tradição nacional.

A própria sociedade civil em destaque na opinião pública não contribui mais no diálogo com o governo ou na elaboração de políticas públicas. Pelo contrário, movimenta-se no universo da iniciativa privada, como se a ausência do Estado fosse um alívio. Garante suas instituições e “beneficia” alguns milhares de pessoas com formações que privilegiam o individualismo social e econômico. Entre os atendidos, alguns poucos alcançam o objetivo de se transformar nas pequenas aves de rapina que darão a ilusão de voo solo sobre o marasmo do atraso social.

Essa produção incessante de valores que já está permeando cada ação governamental se espalha por todo o espectro político da sociedade. Acima e abaixo, à direita e à esquerda, todos parecem encontrar alívio naqueles que demonstram todos os dias como são bem sucedidos dentro do sistema.

Derrubar Bolsonaro com um impedimento ou provocando uma renúncia parece ser o objetivo prioritário da parte mais progressista da sociedade. E, se for para garantir o fluxo das águas que já nos banham, não será sequer uma vitória de Pirro. Será manter o curso do rio de nossas tragédias. Mataremos a hiena e continuaremos gerando aqueles poucos falcões, abutres e outras aves de rapina que vêm devorando nosso fígado.

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