sexta-feira, 23 de abril de 2021

Não os perdoem, eles sabem muito bem o que fazem


Se o arrependimento não inclui todo o projeto de governo bolsonarista e, principalmente, o privilégio concedido ao mercado na condução de políticas públicas, ele não passa de um sentimento pessoal, ou seja, é politicamente nulo. 

Beatriz

Recentemente temos assistido a manifestações de diversas personalidades — de políticos a celebridades — dizendo-se arrependidas por terem votado e/ou apoiado a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Tais manifestações tornaram-se muito mais frequentes no último ano, que, como todos sabemos, foi um ano marcado por recordes de mortes e casos de Covid-19, desemprego, caos social e muitos outros fatos lamentáveis, período que infelizmente ainda não acabou e parece muito longe de acabar. Diante disso, muitos perceberam que, como diz o meme que tem circulado na internet, “não é de bom tom” continuar apoiando o presidente e estão abandonando o navio no qual embarcaram com gosto em 2018 e navegaram por um bom tempo.

O arrependimento é um sentimento comum e absolutamente humano. Só os seres humanos são dotados dessa capacidade, pois são os únicos que podem rememorar atitudes passadas, estabelecer relações de causa e consequência entre o passado e o presente e fazer juízos sobre os resultados de suas ações. Nesse sentido, não há nada mais banalmente humano do que arrepender-se de algo e, portanto, é natural que muitos se arrependam sinceramente de terem votado e apoiado um governo tão ruim que teve como resultado (até agora) mais de 370.000 mortos numa pandemia.

Aliás, é preciso, para se atingir esse arrependimento específico, reconhecer que o governo Bolsonaro é realmente o responsável direto pelas mortes mencionadas acima. Essa é a condição fundamental. Entretanto, a maneira como se reconhece isso também é fundamental: o que exatamente essas pessoas reprovam em seu presidente para terem se arrependido de votar nele? Nas eleições de 2018, diferenças ideológicas à parte, estavam em jogo duas propostas de governo para o Brasil: uma, representada por Bolsonaro, que prometia alinhamento total aos EUA, desregulação total da economia (ou melhor, controle desta pelo mercado financeiro), privatizações e investimento estatal mínimo no que quer que seja, e outra, representada por Fernando Haddad, que representava a continuidade do projeto de governo do Partido dos Trabalhadores, interrompido por um golpe de Estado dois anos antes, que era caracterizada pelo incentivo à integração regional entre os países da América Latina, pelo multilateralismo nas relações internacionais, por políticas públicas na economia, pela preservação do patrimônio público e por pesado investimento estatal na correção de desigualdades. Sabemos qual foi a proposta vencedora. Assim sendo, será que os arrependidos levam em conta o fato de que o plano de Bolsonaro foi rigorosamente posto em prática (e continua sendo todos os dias) quando falam de seu arrependimento? Será que conseguem fazer a conexão entre o plano de governo bolsonarista e os milhares de mortos por Covid-19, que não puderam manter isolamento social por terem de sair para trabalhar todos os dias ou por não terem levado a sério a doença, uma vez que o Governo Federal desprezou a gravidade da pandemia e não fez o necessário para preservar a subsistência da população durante o confinamento, por se guiar pelos interesses do mercado? É exatamente o plano de governo aprovado pela maioria da população em 2018, sendo posto rigorosamente em prática, o que está matando milhares de brasileiros todos os dias em 2021.

Se o arrependimento não inclui todo o projeto de governo bolsonarista e, principalmente, o privilégio concedido ao mercado na condução de políticas públicas, ele não passa de um sentimento pessoal, ou seja, é politicamente nulo. Aliás, a nulidade política de seu arrependimento muitas vezes é reivindicada pelos arrependidos: “não se pode politizar mortes”, “não se pode politizar a pandemia”, “não se pode politizar a ciência” são algumas das platitudes repetidas incansavelmente por eles. Ao arrepender-se do voto em Bolsonaro, mas “não politizar” as mortes, os arrependidos estão transmitindo a mensagem de que o problema não é o projeto de governo, mas apenas a figura do presidente. Ao não criticar o projeto de governo, mas apenas a pessoa do presidente, deixam claro que continuam concordando com todas as premissas que regem seu trabalho, premissas essas que estão tendo o resultado catastrófico dos milhares de mortos e desempregados. Ou seja: os arrependidos farão tudo de novo, basta que o candidato seja outro.

Aliás, alguns dos arrependidos são bem sinceros quanto a esse ponto: assumem que, havendo em 2022 disputa eleitoral entre Bolsonaro e Lula, anularão o voto, irão para Paris “com gosto”, se atirarão do vigésimo andar, entre outras opções semelhantes. Outros fazem questão de trabalhar para que essa opção de disputa eleitoral nem se imponha, pois assim poderão se abster de fazer “uma escolha difícil” e terão uma escolha bem mais fácil entre um candidato de centro-direita e um de extrema-direita. Volto a perguntar: estão arrependidos exatamente de quê?

Da cumplicidade com o genocídio atualmente em curso não é. Pois, se não conseguem reconhecer que os princípios políticos e econômicos que regem o atual governo estão no cerne do descaso e do desrespeito às vidas dos brasileiros, e que isso é, portanto, intencional, não estão arrependidos de nada. Quando se tem em mente a racionalidade da empreitada bolsonarista, fica muito claro que se trata de um projeto genocida em curso. Tal projeto, além de eliminar fisicamente aqueles cidadãos que têm alguma fragilidade física, forma um exército sem precedentes de desempregados dispostos a trabalhar em regime de semiescravidão para garantir o minimamente necessário para sua sobrevivência. É esse o “Brasil do futuro” que tem se formado todos os dias.

Quem não consegue se opor ao novo “Brasil do futuro” simplesmente não se arrependeu do que fez no passado. No máximo, pode cultivar um sentimento pessoal de arrependimento, mas totalmente vazio de significado político. Dito isso, a questão que se impõe à esquerda agora é: vale a pena aliar-se a esses arrependidos? Para usar uma palavra da moda, vale a pena ressignificar esse arrependimento, travestindo-o daquilo que ele não é, trazendo-o à tona politicamente quando no seu cerne está tudo aquilo que é o exato oposto do que a esquerda defende? Vale a pena perdoá-los, quando eles sabem muito bem o que fazem?

Beatriz

Parteira e moscardo. Filósofa comentadora de tudo. Pesquisadora em Filosofia Política.

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