A atual Anvisa nunca teve a intenção de autorizar o uso da Sputnik V no Brasil. A esperança dos atuais dirigentes do órgão era empurrar a decisão com a barriga até a Covid deixar de ser problema, mas a exigência do STF precipitou as coisas e obrigou o órgão a se posicionar sobre a questão. O arrazoado da Anvisa contém apenas pretextos pinçados na documentação para justificar "tecnicamente" a negativa da autorização já decidida desde o começo. Há pressões norte-americanas para dificultar o comércio da Rússia com qualquer país e a vacina é apenas mais um alvo das decisões geopolíticas dos EUA. Países menos alinhados com as posições norte-americanas têm resistido às pressões, mas não o Brasil atualmente. Os técnicos da Anvisa justificaram a negativa do registro da Sputnik V com vários argumentos, todos questionáveis. No entanto, o mais grave é o que afirma ser a vacina composta de vírus replicante, potencialmente perigosa à saúde humana.
É afirmação lastreada na ignorância ou na má fé. A Anvisa já autorizou o uso da vacina AstraZeneca, que opera sob o mesmo princípio da Sputnik e possui a mesma tecnologia de fabricação. Ambas utilizam adenovirus como vetor da informação genética do vírus da Covid e ambas induzem as células humanas a produzirem as proteínas virais necessárias à produção de anticorpos pelo organismo da pessoa vacinada. Embora indesejada a replicação viral, nesse caso, pode ser inclusive necessária para a vacina funcionar, apesar dos mecanismos de replicação do vírus serem inativados pelo seu processo de fabricação. Como a cepa do adenovirus é virtualmente inócua, como agente patológico, isto significa que mesmo que ela se replique não há perigo para a pessoa vacinada, já que, ao mesmo tempo, a replicação pode potencializar a produção de anticorpos. Dizer que o vetor replicante da vacina é elemento suficiente para condená-la é confissão de ignorância e incompetência profissional. É confissão da má fé.
Quanto ao tipo de adenovirus utilizado em ambas as vacinas, deve ser esclarecido que a AstraZeneca usa vírus retirado de rim de chimpanzés enquanto a Sputnik utiliza adenovirus retirado de orofaringe humana.
Ao condenarem a Sputnik, os técnicos deixaram de considerar que o vírus utilizado pela vacina russa é um vírus absolutamente domesticado, amplamente disseminado nas populações humanas e incapaz de produzir qualquer doença detectável. Esquecem, igualmente de dizer que o vírus do chimpanzé é, potencialmente mais perigoso. Como há notícias não comprovadas de que o adenovirus russo é retirado de fetos humanos, obtidos de descarte de abortos legais realizados na Rússia na década de 1960, e mantidos em laboratório mediante replicação artificial, é provável que a decisão da Anvisa tenha sido também religiosa, além de satisfazer a demanda da metrópole. Mas as cepas E1 e E3, utilizadas na Sputnik foram isoladas, de fato, de amígdalas de crianças vivas e são mantidas em laboratório mediante a replicação seriada do adenovirus em culturas de células tumorais humanas, criadas especificamente para esse fim.
Discordo dos meus colegas de parte da comunidade científica brasileira, que aprovaram o veto da Anvisa ao imunizante russo, produzido pelo Instituto Gamaleya. Colegas a quem respeito deixam de considerar fatos que necessitam ser levados em conta, no julgamento da questão. Em primeiro lugar, é necessário considerar que o tratamento dado pela Anvisa aos desenvolvedores de vacinas não tem sido imparcial. A Anvisa não exigiu a realização de inspeções nas instalações dos fabricantes da Pfizer, Moderna ou dos fabricantes da Astra-Zeneca, enquanto submeteu aos fabricantes russos e chineses tal exigência. Ela aprovou prontamente a vacina de Oxford, quando essa vacina utiliza o mesmo tipo de vetor viral e está sujeita, também, a ser contaminada com vírus replicante, no processo de fabricação sobre a qual a própria Anvisa não tem controle. Contaminação essa que está por ser provada, no caso da Sputnik V.
É necessário também considerar que a avaliação de risco da infecção por formas replicantes do vetor viral está sendo desproporcionalmente exagerada. As cepas de adenovirus utilizadas na fabricação da Sputnik são consideradas praticamente inócuas, embora outras cepas desse organismo possam produzir infecções respiratórias e gastrointestinais sem gravidade. Se ignora que a experiência humana com esse agente infeccioso é milenar, sendo raríssima a ocorrência de infecções potencialmente mortais ou incapacitantes. Isso significa que mesmo na possibilidade improvável de contaminação da vacina com formas replicantes do vírus não é razoável esperar a ocorrência de doenças que justifiquem o não uso da vacina.
Ignora-se também que a experiência da indústria com esse vetor não é nova. As cepas russas do adenovirus estão sob teste há mais de trinta anos. Elas são os mesmos vetores virais da vacina contra a infecção pelo Ebola, produzida pelo mesmo laboratório da Sputnik V. São os mesmos vetores que ajudam a prevenir eficazmente essa infecção mortal desde o início da década passada, mediante a vacinação de milhares de pessoas.
Não se pode ignorar que nesse tempo todo de experiência com esse vetor não há notícia de qualquer ocorrência capaz de justificar o temor de danos à saúde de quem se expõe a ele. Não há qualquer relato de ocorrências na experiência com a vacina contra o Ebola e nem contra a Covid, nos testes realizados contra essa última doença até agora. Fato que não se repete com a vacinação com a AstraZeneca. Essa vacina já provocou a morte mais de 190 pessoas em todo o mundo. É fato conhecido e indisputado. Ninguém a proibiu em nenhum lugar, exceto na Noruega e Dinamarca. Muitos de nós aceitam o risco de morte com essa vacina, mas relutam em aceitar riscos menos graves e menos frequentes de uma vacina que possui um componente muito menos letal.
Pode-se argumentar que as ressalvas à Sputnik se devem à escassez de dados sobre a segurança da vacina ou a ocultação intencional das ocorrências indesejáveis produzidas por ela. Mas isso é um insulto à inteligência do estudioso imparcial da questão. Os resultados dos estudos feitos com mais de 30 mil pessoas não evidenciam a concorrência de efeitos indesejados em frequência maior que os produzidos por outras vacinas. É igualmente difícil admitir que a ocultação de fatos negativos possa ser sustentada por mais de trinta anos de experiência com esse vetor ou nas experiências recentes com a Sputnik V. Só quem se alimenta de teorias de conspiração pode acreditar que não há informações suficientes para o julgamento isento do produto.
Dilermando Fazito é médico sanitarista aposentado do Ministério da Saúde e pesquisador na área de leishmaniose e malária, na qual trabalhou durante mais de 40 anos. Foi orientador de mestrandos e doutorandos de medicina na UFMG em metodologia científica e professor do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Barbacena. Atualmente é consultor na prefeitura de Belo Horizonte. Recentemente, deu um parecer positivo para o uso da Sputnik 5 à equipe técnica que analisou a viabilidade da compra da vacina pela prefeitura.
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