Maria Cristina Fernandes
Depois do surto das duas últimas semanas, Jair Bolsonaro resolveu confundir todas as teorias que já pontificavam sobre seu comportamento. O presidente que faz troça de um órfão produzido pela ditadura se diz capaz de se sentar com Adélio Bispo, antes que vire queima de arquivo, para saber o que o levou a esfaqueá-lo.
Na ausência de um laudo psiquiátrico, um amigo, que ainda o chama de Jair, o define como um homem comum, capaz de falar o que pensa, se desdizer e virar uma onça quando cutucado.
Foi assim que se mostrou a Jussara Soares, de "O Globo". A repórter pediu para falar com o presidente e ele a chamou na subida da rampa que separa o salão nobre de seu gabinete. A entrevista foi de improviso na forma e no conteúdo. Indagado sobre os disparates em série, respondeu: "Sou assim mesmo, não tem estratégia nenhuma."
Além de falar o que pensa, Bolsonaro também banaliza o mal
Por trás de todo homem comum que chega à Presidência tem um formulador. Aquele que tem assento no Planalto é Fábio Wajngarten. Depois de influenciar na campanha, foi mantido à distância, mas acabou incorporado ao governo com a queda de Gustavo Bebianno, de quem era desafeto.
No governo, Wajngarten ainda enfrentaria as resistências de Carlos Alberto dos Santos Cruz, não exatamente pela estratégia de comunicação, mas pela forma e, principalmente, pelo custeio de sua operação.
A queda do ministro da Secretaria de Governo escancarou as portas para o discípulo de Steve Bannon, que se tornou estrela da extrema direita mundial advogando a segmentação de públicos pela manipulação da informação. Na campanha a mistura de falso e verdadeiro provocava medo e ojeriza aos concorrentes. Agora ele se dá ao luxo de dispensar a oposição. Diz e se contradiz ou é desmentido por ministros.
Com isso, sempre haverá um Bolsonaro com quem se possa concordar. A soma deles evitará uma hegemonia que lhe seja desfavorável e o deixará na condição de eterno pauteiro. Na medição da Bites, as semanas pautadas pelo surto bolsonarista foram marcadas pelo acréscimo de 1 milhão de seguidores em suas redes sociais.
A O Globo, o presidente disse que pretende multiplicar "Serras Peladas" no país. Garimpeiro na adolescência no Vale do Ribeira e nos bicos que fazia como oficial das Forças Armadas, o presidente abriga com esse discurso desempregados que custam a encontrar algum alento na política econômica de seu governo e permanecem ou se dirigem - para garimpos clandestinos. Mas não apenas. As "pequenas Serras Peladas", para Bolsonaro, também abrigarão empresas estrangeiras e índios.
Uma parte do eleitorado pode acreditar que, num passe de mágica, os três históricos adversários se irmanarão. Uma outra parte pode ficar cabreira, mas ao abrir as redes sociais de Eduardo Bolsonaro se deparará com o deputado, de camisa florida, segurando um cheque gigante de R$ 31 bilhões ao lado do dono de uma multinacional da Indonésia que enfrenta o grupo J&F, dos irmãos Batista, nos tribunais brasileiros.
O tino comercial do potencial embaixador do Brasil nos Estados Unidos, diretamente incumbido pelo chefe paterno a buscar investimentos estrangeiros para a mineração, animará os incautos. Poucos se lembrarão de que um lobista da mesma empresa posou, dois meses atrás, com o vice-presidente Hamilton Mourão com um cheque de R$ 4 bilhões a menos.
O homem comum que chegou à Presidência tem o condão de fazer com que o país pareça depender quase que unicamente dele ao mesmo tempo em que um número expressivo de seus fiéis eleitores acredita que Bolsonaro só não faz mais porque não lhe deixam. O "sistema" que lhe atravanca o governo é o mesmo que atrapalha a vida do seu eleitor.
O presidente só pôde abraçar de vez a comunicação bipolar porque o Congresso encaminhou a Previdência. Como há quem se responsabilize pelas reformas sem as quais não lhe deixariam seguir adiante, ele pode continuar a animar o auditório cuidando de se dissociar daquilo que lhe parece impopular. Setores da oposição como aqueles que puxaram vaias durante o depoimento gravado em vídeo pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em apoio ao jornalista Glenn Greenwald também são de grande valia para o conforto com o qual Bolsonaro desempenha suas funções.
O contraponto que lhes era oferecido pelos militares do seu governo foi neutralizado pelo esculacho no general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que defendera os governadores nordestinos da golden shower presidencial. O general melancia, termo com o qual, nos anos que precederam o golpe de 1964, se acusavam oficiais nacionalistas de camuflarem simpatias comunistas, é uma das principais referências intelectuais do general Villas Boas, ícone das Forças Armadas.
O comandante do Exército, Edson Leal Pujol, já deu demonstrações de que quer dissociar a farda da bipolaridade governamental. Além de proibir manifestações de sua tropa em redes sociais, nomeou para o Comando Militar do Sudeste o discreto general Marcos Amaro dos Santos, o mais graduado dos oficiais que cuidavam da segurança da ex-presidente Dilma Rousseff.
O comandante busca se distanciar num momento em que os oficiais da reserva que servem a Bolsonaro veem decair seu prestígio dentro e fora do Planalto. Um intermediário frequente de pedidos de audiência de empresários com generais do governo reporta uma demanda em declínio. O único que mantém ascendência sobre o presidente é o general Luiz Eduardo Ramos, substituto de Santos Cruz.
Paraquedista como Bolsonaro, é de bombeiro que está trajado no Planalto. Dois dias depois da inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista (BA), da qual o governador se ausentou por discordar das restrições impostas pelo presidente à cerimônia, Rui Costa foi recebido por Ramos em seu gabinete. Em seguida, ligou para o ministro a governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, também petista. Três dias depois, em reunião do Consórcio dos Estados do Nordeste, os governadores evitaram polemizar com o presidente.
É sob o estilo conciliador de Ramos que está abrigado Wajngarten. "Ninguém quer fugir da verdade sobre desmatamento, crianças na rua e violência", disse ontem, um Bolsonaro conciliatório, "mas tem que usar dados precisos", completou o presidente que mentiu sobre a morte de Fernando Santa Cruz. De um lado está a redução de danos. Do outro, o mal que só um homem comum é capaz de banalizar.
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