Bernardo Carvalho
Moral da história de Caim e Abel já não faz sentido no Brasil de Bolsonaro
Ideia de homicídio está desvinculada de qualquer consequência moral
Mesmo conhecendo a história de trás para frente, só lá pelo meio de “Il Primo Omicidio” (o primeiro homicídio), oratório de Alessandro Scarlatti, o espectador começa a entender o que está em jogo na incrível encenação de Romeo Castellucci, com direção musical do maestro René Jacobs.
Quando termina o espetáculo, tentando conter as lágrimas, ele se vira para o lado e para trás e percebe que não está sozinho. Outros na plateia da Staatsoper, em Berlim, também não sabem se batem palmas ou enxugam o rosto. O teatro vem abaixo.
O oratório de 1707 conta a história de Caim e Abel, mas está falando do presente. Num depoimento incluído no programa, Jacobs alude ao assassinato do jornalista Jamal Khashoggi há um ano, no consulado da Arábia Saudita em Istambul. O príncipe e líder saudita Mohammed bin Salman, que Jair Bolsonaro considera “quase irmão”, é acusado de ser o mandante do crime, cometido com requintes de brutalidade e sadismo.
Na verdade, “Il Primo Omicidio” fala do presente por oposição. O efeito moral da história de Caim e Abel se perdeu, já não faz sentido no universo do chefe de Estado saudita ou de seu “quase irmão” brasileiro. A ideia de homicídio está, tanto para um como para o outro, ainda mais quando as vítimas são opositores políticos ou simplesmente jovens negros e pobres, desvinculada de qualquer sentido ou consequência moral.
O extraordinário na encenação de Castellucci acontece na segunda parte do espetáculo, quando Caim mata Abel. O sentido do título do oratório, com libreto de Antonio Ottoboni, não passou despercebido ao diretor. Na época em que Scarlatti o compôs, outras obras tratando do mesmo tema se chamavam simplesmente “Caim” ou “A Morte de Abel”. O entendimento do mito é reforçado pelo sentido inaugural do “primeiro homicídio”, pela ideia de origem de uma maldição.
Até o momento do assassinato, os cantores estão em cena. A partir daí, deixam o palco e passam a cantar no fosso da orquestra. Castellucci os substitui por crianças, que assumem os papéis de Caim, Abel, Adão, Eva, Deus e o Diabo. As crianças no palco são dubladas pelos cantores no fosso da orquestra. O efeito é assombroso, como se de repente fôssemos capazes de entender pela primeira vez o que significa matar.
O Diabo costuma ser responsável por todos os males. Aqui, entretanto, Deus e o Diabo formam uma dupla. Por que Deus permite o mal?
“Sagrado e violência são duas palavras inseparáveis. (...) Caim é um personagem complexo. (...) Pela ação de uma força externa ele comete um ato que não deseja cometer. Ele é parte do plano divino de introduzir o mal no mundo. Sua culpa é paradoxal (...). Ele ainda não tem um conceito da morte, não sabe o que é a morte. Então não pode ser considerado culpado”, diz Castellucci, em entrevista a Jana Beckmann, no programa.
As crianças dão a dimensão dessa inocência trágica, rompida pela descoberta da morte e da culpa. Para atualizar nosso entendimento, o encenador inverte os fatores: “Na hora em que o assassinato acontece, tudo se torna um jogo de crianças. (...) E pela inocência das crianças, Deus é condenado”.
Quando na Bíblia Adão e Eva lamentam a Queda do Paraíso, Abel propõe aplacar a ira de Deus, oferecendo-lhe um sacrifício. Por ser o primogênito, Caim argumenta que cabe a ele fazer o sacrifício, não ao irmão. Adão permite que os dois façam seus sacrifícios. Abel mata uma ovelha e Caim oferece os frutos de sua colheita, mas Deus abençoa apenas o sangue.
Por que Deus prefere o sacrifício de Abel? Deus é o artífice de tudo. Que recado está enviando a Caim? A história é uma disputa de crianças pelo amor de Deus. Então Caim faz como Abel, imita-o, oferece a Deus um sacrifício de sangue. Oferece o próprio irmão.
E se faz parte do plano divino não condenar Caim à morte, mas deixá-lo vagar pelo mundo, é porque ele será o homem da dor, aquele que terá de suportá-la como a um fardo. “Ele é o homem da civilização. (...) Acredito no poder do teatro, como um veneno capaz de aprofundar nossa consciência do mal em nós mesmos, não nos outros. Caim somos nós”, diz Castellucci.
É a lição civilizatória do primeiro homicídio. Uma lição que muitos que hoje ocupam cargos de poder político e religioso parecem ter cabulado. Fica óbvio na aversão pela justiça, pela educação e pelas artes. Já não tem nada a ver com inocência. Faz parte da simples e mais abjeta negação da culpa. E da civilização.
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