domingo, 24 de novembro de 2019

Neoliberalismo do Chile tem grande apelo entre seres totalitários


O menino e seu cavalo

José de Souza Martins

Milton Friedman, da Universidade de Chicago, mentor dos “Chicago boys”, que disseminam o neoliberalismo econômico nos países precários como o nosso, disse que uma economia livre só tem sentido em sociedades democráticas e livres. No entanto, esse neoliberalismo tem grande apelo entre os seres totalitários que transformam as reformas econômicas neoliberais em verdadeiros golpes de Estado de governantes ocultos que governam sem mandato, os técnicos que implementam as medidas que as efetivam.

No mais das vezes, com elas, revogam conquistas sociais preconizadas pelos próprios empresários, induzidos pelas inquietações e demandas dos trabalhadores, como técnicas políticas de racionalização das relações de trabalho e de incremento da produtividade do trabalho através da paz social.

O Chile é apresentado, na propaganda enganosa do neoliberalismo, como país em que as duras medidas que o caracterizam acabam resultando em crescimento econômico e modernização em benefício de todos. O protesto das ruas diz que não. É verdade que o Chile das grandes dificuldades econômicas de 1973 sofreu um crescimento econômico extraordinário de lá para cá, mas às custas de consequências sociais excludentes.

Economistas, e não só eles, têm dificuldade para lidar com a dimensão histórica do tempo, com as temporalidades sociais. O economismo de gente que pensa como os “Chicago boys”, como se vê no dia a dia, é o da economia de longo prazo pensada e reduzida a providências e consequências de prazo curto.

Baseia-se no equívoco de supor que o tempo da história é linear, e não a diversidade dos ritmos do desenvolvimento, do desencontro entre crescimento econômico e desenvolvimento social. Diferentes setores da sociedade são atingidos desigualmente pela economia e pela política econômica.

Aqui no Brasil, no Chile e em todas as partes em que a sociedade se tornou cobaia do crescimentismo neoliberal, foi-o no lugar do desenvolvimento econômico e social. A rapidez das quedas e subidas na vida e a consciência da incerteza que as acompanha geraram e disseminaram os componentes sociais mais sofridos e menos discutidos do neoliberalismo: o medo e a insegurança resultantes.

Os sociólogos deveriam fazer pesquisas sobre isso nos hospitais e nas clínicas médicas, sobre as enfermidades decorrentes da incerteza numa sociedade, como a capitalista da atualidade neoliberal, que investe fortunas só para ter certeza sobre a lucratividade dos capitais. Certeza para quem ganha e a incerteza consequente para quem depende do trabalho. Nada investe nas pesquisas sociais para avaliar o caráter socialmente destrutivo e perverso das inovações econômicas.

A alquimia dos agentes e cúmplices do neoliberalismo não se revela apenas nas informações estatísticas sobre as desigualdades. Agora mesmo, aqui no Brasil, o IBGE anunciou que, em 2018, 1 milhão de pessoas havia caído abaixo do nível de pobreza, as que ganham no máximo R$ 9,30 por dia. Desde 2015, a cada ano, 1 milhão de pessoas têm sido transferidas para o estrato mais baixo da inferioridade social.

Há anos que observo em várias partes as minúcias dessa degradação que se manifesta na dimensão dramática e nas consequências da administração irresponsável das políticas econômicas.

Durante 12 anos fui membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, voltada para as vítimas desvalidas da tirania econômica e social. Em 2004, tendo que participar de um seminário da FAO em Santiago do Chile, fui designado pela Junta para fazer também uma visita a um projeto social da Igreja Católica em Concepción. Ali, a indústria pesqueira e a indústria naval haviam sido duramente atingidas pela economia neoliberal da ditadura militar. A pobreza estendera-se pela região.

O programa social que visitei durante um dia inteiro era um programa de educação complementar, alimentação e orientação de crianças no mais das vezes abandonadas pelos pais em decorrência da crise econômica. Muitas delas “caíram” na prostituição infantil e se tornaram mantenedoras do que sobrara da família.

Um dos casos que analisei em detalhe foi o de um menino de 12 anos, de nome Felipe. Seu principal amigo e colega de trabalho era seu cavalo, com o qual trabalhava diariamente na catação de ferro-velho para sustentar, em primeiro lugar, seu próprio cavalo; em segundo lugar, sua avó; e, com o que sobrava, a si mesmo. A política econômica da prosperidade meramente visual da capital do país cancelara o futuro das crianças que visitei. Um cavalo manso se tornara o arrimo e amigo de Felipe e sua avó. Seres ausentes das estatísticas da prosperidade econômica sem ética, que mostram para encobrir.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Contexto).

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