sábado, 30 de novembro de 2019

A Humanidade tropeçou no caminho para o futuro


Um presente envenenado
'O homem do castelo alto', de 1962, é uma distopia mais atual hoje do que quando foi escrita
José Eduardo Agualusa

Quando uma distopia publicada em 1962 parece mais atual hoje do que na época em que foi escrita, é porque a Humanidade tropeçou no caminho para o futuro. Além disso, podemos imaginar que o seu autor visitou o futuro, não gostou do que viu, e escreveu o livro com a intenção de alterar o rumo dos acontecimentos. Relendo “O homem do castelo alto”, de Philip K. Dick, ou assistindo à extraordinária série inspirada no mesmo, fico com a impressão de que ambas as suposições são verdadeiras.

Philip K. Dick sabia demasiado sobre o nosso estranho tempo. Disfarçou um pouco, ao escrever, em 1968, “Androides sonham com ovelhas elétricas?” (que deu origem ao filme “Blade Runner”), cuja ação decorre nos nossos dias. É verdade que ainda não confundimos humanos com androides. Contudo, muitas das grandes questões colocadas por Dick no seu romance estão sendo debatidas agora. Fomos avisados — mas não compreendemos o aviso.

O que mais surpreende e perturba no caso d'"O homem do castelo alto" não são tanto os avanços tecnológicos, e a sua eventual má utilização, mas o paralelismo com o recuo democrático que vivemos hoje. O livro defende a tese de que “pessoas normais” — ou seja, pessoas que em circunstâncias democráticas seriam cidadãos pacíficos — podem, quando enquadradas num regime despótico, transformar-se facilmente em monstros abomináveis.

Qualquer pessoa que tenha vivido parte da sua vida sob um regime autoritário reconhece a elementar justiça de tal tese: democracias autênticas tendem a puxar pelo melhor de nós; regimes autoritários, pelo contrário, apostam na cultura do ódio, deformando e corrompendo os seus cidadãos, e transformando muitos deles em delatores e assassinos.

Escrevo esta coluna depois de assistir à quarta e última temporada da série “O homem do castelo alto”. Criada por Frank Spotnitz (“Arquivo X”) e produzida pelo cineasta Ridley Scott para a Amazon, a série imagina um mundo alternativo, no qual os nazistas e os seus aliados venceram a guerra. Os EUA estão divididos. A Costa Leste está ocupada pelo Grande Reich Nazista. A costa do Pacífico integra o Império Japonês.

A série permite-nos ter acesso à intimidade da família nazi-americana. Conhecemos suas ideias e aspirações, mas também as suas dúvidas e receios. O Reichsführer John Smith (Rufus Sewell) é um vilão que poderia não o ser — que não o seria em circunstâncias diferentes. E é justamente isso que perturba. Todos nós temos amigos ou familiares que se parecem com aquelas pessoas. Todos nós conhecemos um colega de trabalho ou um vizinho com aspirações a Reichsführer.

As democracias estão em crise. Crise que também é uma crise da esperança e do sonho. Para desmontar um regime democrático há primeiro que abastardar as instituições e os ideais que o sustentam. Um bom exemplo desta política é a recente nomeação de Sérgio Nascimento de Camargo para presidente da Fundação Cultural Palmares. Como já fora antes a nomeação da inefável Damares Alves para ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ou de Ricardo Salles para ministro do Meio Ambiente.

Talvez Philip K. Dick tenha visitado o Brasil do futuro, no início dos anos 1960. O Brasil que temos hoje. Talvez ele tenha visto este presente envenenado.

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