Outro dia, tive a curiosidade de saber quem era o atual campeão mundial de xadrez.
Descobri que é um jovem norueguês. Diz que é uma celebridade, garoto-propaganda de marcas de luxo, dono de aplicativos de enxadrismo para celular, citado naquelas listas nonsense da Time de "pessoas mais influentes do mundo".
Tão famoso que até apareceu num episódio dos Simpsons.
Eu nunca tinha ouvido falar dele.
Minha teoria era de que o campeonato mundial de xadrez tinha perdido a graça no final do século passado.
Talvez por causa do Deep Blue. Quando um computador ganhou do campeão mundial, o jogo perdeu sentido.
Mas sobretudo por causa do fim da Guerra Fria.
O xadrez é uma metáfora óbvia da luta pela dominação mundial. (Aliás, os defensores do boxe, confrontados com a ideia de proibir um esporte tão violento, costumam voltar suas baterias contra o xadrez. Ele é que teria consequências danosas para a saúde, especificamente a saúde mental. Como escreveu, meio a sério, meio de brincadeira, Joyce Carol Oates, que é fã de boxe, “megalomania e psicose frequentemente esperam o grande mestre”.)
Sendo assim, a disputa do título mundial, a cada três anos, parecia uma encenação da luta entre Estados Unidos e União Soviética.
Eu era bem garoto. Nunca joguei xadrez direito - na verdade, mexo as peças mal e porcamente. Mas acompanhava as disputas com entusiasmo. No noticiário da rádio Jornal do Brasil, eu lembro bem - não tínhamos tevê em casa e meus pais costumavam ouvir a rádio JB.
Um trem demorado, chato. Xadrez pelo rádio... Mas o entusiasmo vinha do fato de que era grande a certeza de que os soviéticos iam ganhar.
Afinal, com exceção de Bobby Fischer, eles eram sempre os campeões. Eu, garoto, olhava as listas dos ex-campeões e gostava especialmente do Tigran Petrossian - pela sonoridade do nome, claro.
Era um sinal, também, o fato de que o primeiro jogador lendário, Capablanca, era cubano. É verdade que foi nos anos 1920 e ele morreu bem antes da revolução, mas era um sinal.
O negócio era levado a sério, com aquela seriedade própria da Guerra Fria. Contam que Bobby Fischer arrancou todas as obturações antes de disputar o título contra Boris Spassky. Ele temia que agentes da KGB tivessem inserido radiotransmissores no amálgama e usassem algum método para confundir suas ondas cerebrais.
Contam também que, quando disputou contra Anatoli Karpov, Viktor Korchnoi exigiu que fosse colocado um blindex entre os jogadores e a plateia, para evitar que paranormais soviéticos disfarçados no público tentassem controlar sua mente.
Korchnoi, aliás, era o mais desprezível dos adversários. Um dissidente soviético, lutando contra a pátria-mãe. Os dois campeonatos de que melhor me lembro foram os dois em que ele perdeu para Karpov - 1978 e 1981.
Karpov se tornou um herói pessoal. Quando a gata lá de casa voltou prenha, depois de um passeio involuntário pela rua, e pariu um único filhote, ele foi batizado como "Karpovinho".
Então veio Kasparov, que durante algum tempo parecia encarnar a glasnost e depois se tornou um ícone liberal. Veio a confusão da disputa pelo título mundial de 1984, o racha na FIDE, Deep Blue...
Faz muitos anos que não jogo. Ensinei meu filho a mexer as peças, ele aprendeu o suficiente para ganhar de mim (o que não é muito) e foi só. Sem o estímulo da Guerra Fria, parei de acompanhar o campeonato. Foi uma surpresa saber que ainda tem peso a ponto de fazer do campeão uma rentável celebridade mundial.
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