quarta-feira, 27 de maio de 2020

A lógica da socialização das perdas em tempos de pandemia




Uma das mais conhecidas técnicas de enriquecimento, e que nunca se diz que é imoral ou ilegal, é a chamada política da socialização das perdas. Ela acontece em todo o sistema capitalista e em todos os tempos. No Brasil, ocorre desde a República Velha, quando os grandes cafeicultores de São Paulo conseguiram acordos para que o governo comprasse a produção de café caso o preço internacional caísse abaixo de um determinado valor. Na prática, quando a produção de café desse prejuízo, este prejuízo era absorvido pelo ente público,. Quando desse lucro, o lucro ia para as mãos dos agentes privados. A mesma política existiu nos EUA, Inglaterra e França (e outros) nos processos de industrialização e no colonialismo e neocolonialismo. Qualquer historiador demonstra e denuncia tais relações como a base do sistema de enriquecimento capitalista. Concorrendo lado a lado com a produção "meritória" e o livre comércio.

A História mostra que não há capitalismo sem Estado, e isto também porque o capital privado precisa do público para acomodar suas próprias perdas. A situação é tão comum que é possível delimitar uma série de mecanismos que o capital força o Estado a criar para exatamente dividir os prejuízos. O controle cambial, por exemplo, é um deles. Ao amarrar-se ao Estado, o capital se assegura que as perdas serão socialmente distribuídas e assim o prejuízo será tão grande que recursos públicos virão para socorro. Foi assim EM TODAS as crises do capital desde a segunda metade do século XIX.

O exemplo mais recente foi a grande crise de 2008, quando os Estados mobilizaram um valor que poderia ERRADICAR a fome no mundo para salvar meia dúzia de grandes empresas. "Meia dúzia" eu exagerei, mas o total não chega a 35 empresas que receberam mais de 75% dos valores. No Brasil, a bancada ruralista vive desta política. É possível dizer-se que desde o regime militar que não se passam sete anos sem uma anistia tributária ampla que concede aos latifundiários brasileiros perdão pelas centenas de milhões em impostos atrasados. O sistema é tão comum que latifundiários ja contabilizam ajuda eleitoral de campanha a determinados candidatos como "custo fixo" de seus negócios.

Na indústria acontece o mesmo. Tudo que o capital não aceita é o "risco". O mesmo risco que os jovens apedeutas liberais brasileiros endeusam como distinção da riqueza capitalista. Pela politica da socialização das perdas ele é zero. As grandes empresas exigem doações de áreas para se instalarem. Diminuição ou mesmo concessão plena dos impostos por vários anos. Exigem que o Estado crie locais de moradia, escolas para treinar a mão de obra, infraestrutura de comunicação, estrada e - ainda - no final buscam financiamento público para suas empreitadas. Se você somar tudo o que estes "empreendedores" recebem de graça, no final o risco de perdas é zero ou muito perto disso.

O que ninguém previa era uma pandemia.

Deixado o "mercado" trabalhar e teríamos o imenso aumento do custo da mão de obra e a redução do custo relativo do capital. Seria o momento dos trabalhadores aumentarem seus ganhos, afinal, ninguém está arriscando mais do que o trabalhador indo trabalhar. Os salários deveriam aumentar, as empresas deveriam pagar adicional de risco, insalubridade e tudo mais. Porém, aí entra a política de socialização das perdas. O desmonte da legislação trabalhista, a assistência pública aos trabalhadores e os bilionários repasses que Guedes e sua trupe de liberais fizeram aos sistemas bancários, se somados passam de 2,5 trilhões de reais. E tudo isso para o enriquecimento e acumulação dos milionário e bilionários.

Quando Bolsonaro obriga a reabertura e ordena os trabalhadores voltarem ao trabalho é a necropolitica de socialização das perdas. Ele força a baixa do valor da mão de obra e coloca todo o risco nas costas do trabalhador. "Se morrer, paciência". E cada família brasileira joga uma roleta russa, todo dia, com seus entes se submetendo às exigências do governo para que se arrisquem. Enquanto com uma mão empunham o porrete sobre a classe trabalhadora, com outra garantem dinheiro público a bancos e grandes empresas. Não há nenhuma dúvida que pela ação de Guedes e Bolsonaro, após a pandemia os estudos vão mostrar que houve um enriquecimento das elites e o processo de empobrecimento dos trabalhadores.

Se o mercado quer trabalhadores que aumente os salários a ponto de o risco de morte valer o salário pago. Ocorre que o que se vê é o estalo do chicote do Estado nas costas do trabalhador enquanto bancos aumentam seus juros e recebem recursos públicos de "ajuda", e empresários que já sonegam normalmente agora recebem incentivos para não pagar impostos.

Não houvesse na base do capitalismo a política de socialização das perdas e figuras como o "véio da Havan" não existiriam. O que os liberais exaltam como "livre mercado" e "iniciativa privada" é, na realidade, uma política de "risco zero" financiada pelo Estado com uma das mãos, enquanto com a outra mantém a força de trabalho miserável e violentada.

O "tempo de oportunidades" que o dono da AMBEV previu na pandemia só existe para os banqueiros, grandes indústrias e funerárias. Eles ganham, enquanto os bancários os trabalhadores de fábricas e os coveiros só enxergam aumentar a oportunidade de morrer na pandemia.

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