domingo, 31 de maio de 2020

Fábulas fabulosas


Fábulas mui, mui distantes 

Antonio Prata
A palavra 'instituições' soou tão bela que fez com que preás rolassem na relva
Você conhece a velha fábula chinesa sobre os preás e a serpente? Pouco provável, porque acabei de inventar a velha fábula chinesa sobre os preás e a serpente.

A história é assim, desde o século 11, faz dez minutos: um belo dia estavam os sino-preás aquecendo-se na relva sob o sol primaveril quando avistaram ao longe uma serpente. Um preá mais precavido alertou: “comunidade preática, eis ali uma serpente!”.

Os outros preás desdenharam: “calma, nóia, tá longe”. O precavido preá ponderou: “tá longe, mas tá vindo, uma hora chega”. Os outros relevaram: “chega, mas demooooooora”. O aflito preá insistiu: “e quando chegar?”

Os outros preás seguiram ao sol, girando de um lado pro outro, gozando o prazer de coçar a pança na grama e de comer frutas silvestres: “no futuro, quando a serpente chegar”, disseram, “talvez já nem seja mais serpente. Talvez os caminhos do bosque a amadureçam, o roçar das raízes na pança façam-na mais fiel às instituições”.

E a palavra “instituições” soou tão bela que fez com que os preás rolassem e rolassem e rolassem despreocupados na relva.

O preá desesperado já estava quase gritando, tuitava e mandava mensagens de zap o dia todo: “como vocês não percebem?! Ela nasceu serpente! Cresceu serpente! Manteve-se serpente há décadas! Nunca disse que deixaria de ser serpente! O que leva vocês a achar que ela moderará sua serpentice?!”.

Um preá descolado e blasé, de aros grossos e metido a sabichão, disse que o medo dos preás era mimimi, vitimismo, vontade de conseguir cota em universidades e dinheiro da Lei Preáunet.

Disse que se a serpente não aprendesse nada no caminho, a sólida comunidade de preás serviria para civilizá-la e pronunciou uma frase que tinha um poder ainda mais encantatório do que “instituições”: “freios e contrapesos”.

E todos os outros preás, ouvindo as palavras mágicas “freios e contrapesos”, entorpecidos por um climinha mezzo Founding Fathers americanos, mezzo Montesquieu, fizeram um high-five e voltaram a rolar na relva. Daí, a serpente chegou e comeu todo mundo.

Há também uma linda lenda quirguistã, relatada pelo sábio Burslandin, no século 13. Sob o reinado de Birsludin, no território de Ashtar, houve uma grande seca. Todos padeciam da fome e da sede. A cada dia que passava, era menor a quantidade de comida e bebida ao alcance de cada súdito do reino.

Então, quando a coisa ficou preta, Birsludin decretou que todos aqueles que punham o papel higiênico na parede de forma que a folha saísse por baixo, não por cima, eram inimigos do reino. Birsludin condenou todos estes à morte por empalamento.

Então metade da população morreu. E com metade da população morta, a seca não castigou tão violentamente a outra metade.

O comércio reabriu rapidamente. Havia momentos em que alguém sofria, saudoso, pensando num ente querido. Mas bastava morder um caqui e a dor passava. Porque, afinal, a generosidade não resiste a uma barriga vazia.

E tem também aquela história da Venezuela, né? Onde eles elegeram um facínora pra acabar com o PT e deram todo o poder pro facínora acabar com o PT, daí o facínora armou as milícias e destruiu as instituições e deu um golpe e torturou e matou todos os que ele achava que tinham a ver com o PT, o que incluía qualquer cientista, artista, operário, autônomo, esportista, negro, gay ou tantos outros que compunham basicamente 70% da população e ponto final.

Antonio Prata
Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.

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