sábado, 30 de maio de 2020

Hermenêutica da hemorroida


José Eduardo Agualusa
Até hoje, ninguém havia conseguido juntar numa mesma frase, com um mínimo de coerência, os conceitos de liberdade, verdade e hemorroidas
Como milhões de pessoas ao redor do globo, o discurso do senhor Jair Bolsonaro perante os seus ministros provocou em mim violenta comoção. Considero-o uma das mais extraordinárias peças de retórica jamais produzidas por um chefe de estado — sóbrio ou totalmente embriagado.

A bem dizer aquilo nem foi um discurso: foi um atentado. Jair Bolsonaro fez-se explodir, em meio a todas as excelências do seu governo, detonando com ele as convenções burguesas, a moral cristã e, de caminho, o sólido prestígio da instituição militar.

Bolsonaro é, afinal, um revolucionário anarquista infiltrado na ultradireita cristã. Não acredito que os partidos representantes da direita brasileira, as igrejas neopentecostais e o exército se recomponham alguma vez dos estragos causados pela explosão sacrificial do camarada Bolsonaro.

Ao institucionalizar a obscenidade, Bolsonaro corrompe a instituição, num genial gesto anarquista, que Proudhon, onde quer que esteja, deve estar aplaudindo de pé. A eficácia desta subversão revolucionária pode avaliar-se pela condescendência com que pastores e generais aceitaram o discurso de Bolsonaro, e pela tímida tentativa de alguns ministros ao tentarem acompanhá-lo na produção de palavrões, semeando o cupim da desordem nos instáveis alicerces da democracia burguesa. Bolsonaro, portanto, é o messias que os anarquistas radicais há tanto tempo aguardavam.

Contudo, o que mais me surpreendeu e vem inquietando é aquela misteriosa referência às hemorroidas: “O que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade”, afirmou Bolsonaro, firme e enfático. Até hoje, ninguém havia ainda conseguido juntar numa mesma frase, com um mínimo de coerência, os conceitos de liberdade, verdade e hemorroidas.

Os céticos dirão que também na frase de Bolsonaro falta coerência. Houve até quem sugerisse, maldosamente, que o grande estadista teria trocado hemorragia por hemorroida, por desconhecer o exato significado de ambos os termos. Pura calúnia! Só um profundo pensador, um imenso escritor, seria capaz de uma ousadia assim, misturando o sagrado e o profano, o sublime e o infame, criando uma imagem de tremendo impacto, que se prende ao cérebro como um carrapato — perdoem-me a rima incauta.

Confesso-me, contudo, incompetente para decifrar a hermenêutica da hemorroida. O que simboliza? E quem serão os obscuros sujeitos que atentam contra “a nossa hemorroida, a nossa liberdade”?

Esperei que o filósofo Olavo viesse a público esclarecer-nos, tanto mais que ao longo dos anos se revelou um especialista em tudo que diga respeito à extremidade do intestino. Deve ser, aliás, o filósofo que mais atenção dedicou a essa parte da anatomia humana.

Esperei em vão. Olavo, no seu remoto exílio americano, permaneceu em silêncio.

Assisto, entretanto, ao triunfo do projeto bolsonarista de demolir a moral e os bons costumes através da generalização da grosseria. Vejo, nas redes sociais, os seus seguidores insultando tudo e todos, com feroz ódio e uma imparável torrente de palavrões. Infelizmente, até nos palavrões demonstram fraca criatividade e conhecimento da língua. Sugiro que leiam o “Dicionário de insultos”, de Sérgio Luís de Carvalho. Também na boçalidade se exige um mínimo de conhecimento e elegância.

Um comentário:

  1. Vou esperar.seu próximo comentário a respeito destas pessoas q tomaram de assalto o Planalto e tentam expandir-se para todo o País.Acho q seus comentários não chegam ao entendimento deles.Tem q abaixar mais o nível.

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