Marcelo Coelho
Se alguém acha que a Terra é plana, não dá para tratar apenas como duas 'opiniões diferentes'
Sou daquelas pessoas que adoram ter rotina. Quanto mais, melhor.
Uma série de TV nova, por exemplo, não pode ser desperdiçada em duas noites de maratona. Gosto de um capítulo por dia, no horário certinho.
A felicidade se anuncia, desse modo, nos ponteiros do relógio. Um mínimo de espera valoriza o meu prazer. No fim do dia, posso me dar por vitorioso se “tiquei” o que tinha de cumprir.
Sem hábitos, a vida de todo mundo seria como uma casa sem paredes, ou uma escada sem nenhum corrimão.
Mas a quarentena vai mostrando que os hábitos são menos estáveis do que parecem. Úteis para manter a vida sem mudanças, o fato é que eles vão mudando também.
Comigo, algumas coisas têm se intensificado. No começo da pandemia, eu estava apenas lavando as mãos com mais frequência. Fui aprendendo, como muitos de minha classe e sexo, a lavar roupas, pratos e panelas.
Passam-se duas ou três semanas, e o detergente já não me satisfaz. Vejo que a panela, por mais “limpa” que eu a deixasse, começou a acumular algo que não sei se é caramelo, ferrugem, meleca seca ou molho inglês. Que estranho! E a esponjinha, mesmo no seu lado mais áspero, não resolve.
Descubro então o sapólio líquido e o Bombril. Rasp, rasp.
Que vitória! A panela recupera o brilho. Entusiasmo-me com os poderes do abrasivo, do penetrante, do cáustico.
Sentado no vaso sanitário, começo a notar o acúmulo de limo ou de algum outro tipo de impureza prateada ou preta no recesso da parte de baixo da torneira. Não passará impune. Jatos de cloro?
Espumas de soda cáustica? Extintor de incêndio tipo C? Minha mobilização aumenta em volume e em minúcia.
As compras do supermercado? Por um tempo eu simplesmente as guardava sem pensar. Não mais. Non, nein, niet! Empunho pistolas de poderosos antissépticos —brancos, verdes ou azuis— e borrifo tudo o que enxergar pela frente (e pelas costas também).
Tudo, das ameixas aos zucchini (argh)! Em toda parte, o gosto de Pinho-Sol, de amoníaco, de Diabo Verde; pouco importa. É o Coelho em marcha; nada irá detê-lo.
Passo ao teclado do computador. Ah, mas nada de iniciativas perfunctórias, paninhos úmidos, esparsas flanelas, dedo molhado na saliva.
Vou direto ao cotonete alcoólico, à ponta do estilete, à agulha esterilizada em maçarico, quem sabe. E as sujeirinhas, os grudinhos, escondidos no vão de cada tecla como nas unhas de João Felpudo, tornam-se objeto de um rigoroso e feliz combate.
Mas sem perder a ternura jamais! A palma da mão, engelhada de tanto sabonete, os dedos, invisivelmente cortados com a palha de aço, e o próprio rosto, exposto à agressão de vapores bactericidas, conhecerão agora os hidratantes, os umectantes, os emolientes.
Geranióis, carités, lanolinas, limonenos, acrilatos. O coitado do vírus não sabia com quem estava se metendo.
Outros hábitos, além disso, ganham nova força.
Há bastante tempo eu vinha evitando a contaminação do ódio, da burrice e dessa tão paradoxal mistura de ingenuidade e sanguinolência que é característica dos bolsonaristas. Procedo regularmente à eliminação de amizades indesejadas no Facebook; reduzo ao mínimo as leituras de jornal; desdenho os arrependimentos tardios, bloqueio quem devo e quem não devo.
Vivo então numa bolha, dentro de outra bolha; essa coisa de respeitar a opinião do outro não é muito comigo. Menos ainda, a de me interessar pela ignorância e pelo disparate.
Há um mal-entendido, a meu ver, nessa história de “respeitar”. Se alguém acha que a Terra é plana, não sou dos que dizem “respeito a sua opinião”.
Não respeito; não há como respeitar. Não dá para tratar apenas como duas “opiniões diferentes” a ideia de que a Terra é um planeta e a crença de que é uma casca de tartaruga gigante, um LP de Nelson Gonçalves ou uma calabresa arremessada ao éter pelo Grande Pizzaiolo.
Trata-se de respeitar, eu acho, não uma opinião absurda, mas sim o sofrimento, a neurose, a doença de quem a emite.
Respeito a pessoa —o fundo bom dessa pessoa— que acredita na loucura; a menos, claro, que venha com socos e bandeiradas para cima de mim.
Serão sintomas, talvez. Não respeito a doença. Não a quero por perto. Mas rezo de mãos juntas (e com muito desinfetante por cima) para que todos se recuperem depressa.
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