Dizem as más línguas que quem venceu o debate entre Kamala Harris e Mike Pence foi a mosca que pousou no cabelo deste. Não sei se venceu, mas pelo menos chamou a atenção de muitos milhões de espectadores.
Vendo a mosca ali tão confiante, tão explícita, descansando durante eternos 123 segundos no liso esplendor do cabelo de Pence, lembrei-me de um filme recente, “Tudo pela arte” (“The Burnt Orange Heresy”), de Giuseppe Capotondi, com Claes Bang, Elizabeth Debicki, Donald Sutherland e Mick Jagger. No filme, o personagem de Bang, James Figueras, é um prestigiado crítico de arte, que vai entrevistar um velho artista plástico, famoso pela reclusão e pelo secretismo da sua pintura. Em determinada altura, Figueras chama a atenção para um fato curioso: a partir do século XV muitos pintores europeus começaram a colocar moscas em algum canto das suas telas, sobretudo nos retratos de determinados personagens. Segundo o ficcional crítico de arte, as moscas simbolizariam a corrupção. Uma mosca numa tela funcionaria como um código secreto, sinalizando aos restantes pintores, ao Senhor Deus, à posteridade, ou todos eles, que o retratado se incorporara em vida às legiões de Belzebu — o demônio das moscas e da pestilência.
Tenho dúvidas: se quem vê o retrato repara na mosca, então também o retratado, que provavelmente terá pago um bom preço pela obra, deveria reparar. E certamente estranharia e quereria conhecer o significado daquela entidade minúscula, porém tão desagradável, comprometendo a dignidade e a higiene da sua figura.
Uma outra tese afirma que as moscas estariam ali para acrescentar realismo à pintura. Afinal, se a realidade era cheia de moscas (segundo inúmeros testemunhos da época haveria muito mais moscas do que nos nossos dias), então a forma mais fácil de tornar verosímil uma ficção era levá-las para lá. Acreditava-se até que se alguém sonhasse com moscas, é porque não estaria sonhando.
Finalmente, há quem defenda que o desenho de uma mosca numa tela servia sobretudo para afastar os insetos reais.
Em qualquer dos casos, Mike Pence não sai bem da alegoria. Tomando como certa a primeira tese, isso significa que Deus, o universo, o acaso, ou o que quer que seja que criou aquele estranho momento, estaria dessa forma denunciando Mike Pence como uma pessoa corrupta, devota de Belzebu.
A situação fica mais interessante levando a sério a segunda tese: a mosca teria sido colocada ali não pelo acaso, por Deus ou pelo universo, mas pelos marqueteiros republicanos, de forma a conferir alguma realidade a um sujeito que até então vinha se destacando pela extraordinária insubstancialidade (creio que é a primeira vez que uso esta palavra).
A última hipótese envolve também os marqueteiros republicanos. A mosca, que não era real, e sim uma réplica exata, um prodígio da tecnologia norte-americana, foi colocada naquela posição estratégica para afastar as moscas reais.
Antes de iniciar esta coluna prometi a mim mesmo que não falaria de excrementos. Não vou falar.
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