Uma armadilha constitutiva do bolsonarismo é que o discurso messiânico, que mantém a imagem do "mito" ativa junto às bases, entra em conflito com as acomodações e concessões próprias da política. Ela se junta ao paradoxo de uma liderança "antissistêmica" cujo fito é reforçar os elementos mais regressivos e autoritários do sistema em vigor.
Malandragem (dele) e má fé (dele e de sua base), tão adequadas ao nosso Zeitgeist funesto, têm feito Bolsonaro se equilibrar bem melhor do que o razoável nesta corda bamba. Assim, ele se consagrou como o patriota que beija os pés dos ianques, o inimigo das elites que dá tudo aos banqueiros, o justiceiro que vive de braços dados com bandidos, o cristão zoófilo e adúltero.
A resposta das redes bolsonaristas é, muitas vezes, o silêncio. Para elas, é como se Queiroz não existisse, a conta de Michelle estivesse impoluta etc. O pacto de ignorância dentro da bolha, que faz desaparecer determinados fatos, é um instrumento importante para "controlar a narrativa".
Quando Moro rompeu com o governo, Bolsonaro enfrentou seu primeiro grande desafio. Mas suas redes construíram a imagem do ex-ministro como traidor e até petista infiltrado. Não importava a falta de lógica; as pessoas se excitaram com a possibilidade de apedrejar o ídolo recentemente caído. A notória ausência de capacidade de liderança de Moro também ajudou. No frigir dos ovos, a defecção não teve grande impacto.
O estrago provocado pela nomeação de Kássio Nunes pode ter outra dimensão. Não falo de Olavos e Girominis, que estão sempre vendo as oportunidades para aumentar o próprio cacife no balcão de negócios do extremismo nas redes. Mas sim do bolsonarista médio, que vê seu mito ignorar a promessa tantas vezes repetida (a nomeação do "terrivelmente evangélico"), em fraterno congraçamento com o arqui-inimigo Dias Toffoli.
Nas redes bolsonaristas que às vezes consulto, vejo muita consternação e redução acentuada do ânimo militante. Ainda mais que, pouco antes, Trump tinha anunciado sua escolhida, uma fascistoide raiz, escancarada. O contraste faz o presidente brasileiro parecer frouxo e assustado.
Em favor de Bolsonaro, a partir de influenciadores de médio porte, em geral desconhecidos para mim, montam-se duas linhas de argumentação.
Uma defende Nunes de suas decisões consideradas controversas (o caso das lagostas, a extradição de Battisti), explicando que elas foram técnicas e de acordo com a lei. Outra aponta a nomeação como necessária, já que "a política é a arte do possível" (o clichê está sendo muito repetido). Ou, nas palavras sutis de um influenciador bolsonarista de segundo time, não dá para "limpar a latrina sem se sujar de merda".
Ao contrário do que aconteceu no caso de Moro, a postura é defensiva, não ofensiva. E exige do bolsonarista médio duas coisas difíceis para ele: respeito pela lei e entendimento de que a política é diferente da brutalidade.
O bolsonarismo sofrerá então um golpe fatal? Infelizmente, tudo indica que não. Mas a dose de autoilusão, de má fé, de estupidez voluntária, que é necessária para manter a devoção ao "mito" não para de crescer. Uma hora, espero, a corda há de arrebentar.
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