Inspirado no Brasil de hoje, Ari Barroso não teria composto um samba-exaltação, mas um lúgubre cantochão. Presidemente Bolsonaro transformou o País num inferno tropical.
Abra a cortina do passado. Mas não precisa tirar a mãe preta do cerrado nem botar o rei Congo no congado. Basta abrir a cortina e olhar para trás, matar a saudade e nada mais.
Saudade daquela “terra boa e gostosa”, daquele país “lindo e trigueiro”, que foi tão querido, invejado e mitificado mundo afora, não este pária que, por obra e graça de seu presidemente, o planeta inteiro agora deplora e rejeita como um perigo à sobrevivência da própria humanidade, um Hitler sem campos de extermínio oficializados. Um país que não inspira mais samba-exaltação, no máximo um lúgubre cantochão.
Revi, dia desses, duas fotos que marcaram época, dois registros de um outro e fagueiro Brasil: o presidente JK conversando com a atriz Kim Novak, no Palácio do Catete, em 1960, ambos sem sapatos, e o presidente Lula na pista do aeroporto londrino, em 2006, sob o guarda-chuva do príncipe Philip, ambos garbosos e sorridentes. Senti até um aperto no coração.
Na indigência moral, espiritual, econômica, sanitária e alimentar em que nos encontramos, qualquer coisa que me remeta ao País de poucos anos ou cinco décadas atrás me emociona e, ao mesmo tempo, me deprime. Ando a suspirar até por aquele paraíso tropical negativamente estereotipado como um Xangri-Lá de escroques internacionais, que para cá fugiam ou ameaçavam fugir no final dos filmes. E ergo um brinde a Ronald Biggs, o patusco assaltante de trem inglês, e Alexander Sebastian, o hitchcockiano espião nazista imortalizado por Claude Rains em Interlúdio.
Também, dia desses, um internauta escreveu que o Boçalnistão em que se transformou a terra do “mulato inzoneiro” e da “mulata sestrosa” estava muito pior do que a distopia imaginada por Terry Gilliam em Brazil (Brazil: O Filme), já lá se vão 36 anos. Revi o filme, disponível no YouTube, e não serei eu a discordar.
Insisto nas imagens da aquarela de Ary Barroso, não só pelo que expressam do Brasil idílico que se fixou no imaginário universal, mas porque o filme de Gilliam, adrede homônimo da versão internacional de Aquarela do Brasil, faz do nosso samba-exaltação primordial o seu leitmotiv.
Carro-chefe de um modesto musical da Republic, igualmente intitulado Brazil, para o qual Ary compôs outros temas e por um deles (o samba Rio de Janeiro, aquele que proclama que “nossas flores são tão raras, nossas noites são tão claras”) concorreu ao Oscar de “melhor canção” de 1945, Aquarela do Brasil não era interpretado no filme pelo nosso Francisco Alves, mas pelo ator e cantor mexicano Tito Guizar.
Na versão em inglês que lhe deu S.K. Russell, a exaltação às nossas riquezas naturais cedeu lugar a uma canção amorosa, que remói um fugaz romance ao luar e acena com um reencontro “no velho Brasil”. Em sua gravação, na década de 1950, Frank Sinatra enfatiza: “man, it’s old in Brazil”. Nunca entendi a ênfase; o Brasil, afinal, foi descoberto oito anos depois da América do Norte.
Mas isso é irrelevante. O que importa é a fixação de Sam Lowry, o protagonista da comédia de Gilliam, num lugar edênico fantasiado por ele a partir dos primeiros versos de Russell e das dez primeiras notas de uma insossa interpretação de Aquarela do Brasil.
Encarnado por um Jonathan Pryce muito parecido com Stan Laurel e o James Stewart dos anos 1930, Sam é um Walter Mitty orwelliano, que sonha voar como um Ícaro de quadrinhos (Pygar, o anjo cego de Barbarella, por exemplo) e salvar a garota de seus sonhos, Jill Layton (Kim Greist), de monstros que parecem saídos de um pesadelo erótico desenhado por Bosch e Kurosawa e dispersos por ambientes que poderiam ter sido concebidos por Folon, Magritte ou De Chirico.
A fartura de referências visuais, literárias e cinematográficas a que Gilliam recorre é impressionante. Além das já citadas, o mais intelectual gaiato da trupe britânica Monty Python pisca o olho para Stan Lee, os Irmãos Marx, Eisenstein, Escher e Rabelais. Suas imagens convulsivas, sua grotesqueria néon-surrealista, sua trama labiríntica, sua féerie onírica, seu humor negro e desesperado talvez saturem ainda hoje a maioria dos espectadores, mas desconfio que não havia modo mais “simples” e sedutor de submeter a distopia de Blade Runner à anarquia estética dos Monty Python.
Quando, em 1978, buscava locações para seu primeiro filme, no País de Gales, Gilliam foi bater numa praia triste e cinzenta. Antes que uma crise de depressão o tocasse dali às pressas, ouviu no rádio de um banhista uma gravação inglesa de Aquarela do Brasil e, do contraste absoluto entre o que seus olhos viam e a música evocava, sacou o plot de Brazil, que só ficaria pronto na década seguinte.
Distopia futurista sem data nem identidade definidas, sua ação se desenrola “em algum ponto do século 20” (que, aliás, só teria mais 15 anos pela frente), num ambiente que ora lembra Metrópolis, de Fritz Lang, ora o romance 1984.
Ao comentar o filme, quando de seu lançamento nestas bandas, falei em purgatório videocrata, Babilônia pós-punk, panoptismo eletrônico e frioleiras que tais. Desta vez, chamaram mais minha atenção os pontos que o aproximam e o distinguem do Brasil real, o Brasil de que todos querem distância.
Ele está lá. No ecossistema degradado pelo lixo industrial, no terrorismo miliciano, na metástase burocrática, no consumismo frenético da população (“Consumidores por Cristo” substituem, com ressonâncias evangélicas, o Exército da Salvação). Ao avistar uma bomba de oxigenação no meio da rua, com transeuntes ventilando os pulmões em cilindros com feitio de orelhão, pensei comigo: só ficou faltando o coronavírus.
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