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domingo, 19 de janeiro de 2020

2013: o ano em que o País tirou o Diabo para dançar na Primavera que jamais chegou

Os quinze primeiros dias de 2020 foram marcados por dois acontecimentos ironicamente ligados no tempo e no espaço, presente e passado: os atos de Movimento Passe Livre em São Paulo (com esperada repressão policial) e o inacreditável vídeo plágio-nazi-Goebbels do demitido secretário da cultura Roberto Alvim. Enquanto os protestos no Centro de São Paulo mostravam que o MPL voltou à sua condição inicial, desconhecida para a maioria dos brasileiros, capaz de mobilizar algumas dezenas de pessoas (nada parecido com 2013 em que foi a centelha da explosão de um barril de pólvora), o vídeo de Roberto Alvim apenas tornou explícito por que aquilo deu nisso – o vídeo simplesmente revelou que a “primavera” das chamadas “jornadas de junho” de 2013 jamais chegou: ao invés de um futuro melhor, abriu caminho para a extrema-direita. Sem perceberem, as manifestações de 2013 tiraram o Diabo para dançar – basta revisitar os bastidores e a localização geográfica dos usuários das redes sociais daqueles dias inebriantes para percebermos que as primeiras notas da trilha de Wagner do vídeo de Roberto Alvim já estavam sendo tocadas pela guerra híbrida.  
Esse ano começou com três atos no centro de São Paulo do Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da tarifa do transporte público. Bloqueios de policiais com escudos, integrantes do protesto e black blocs tentando invadir estações de metrô, dispersões com bombas de gás lacrimogêneo, coquetéis molotov, faixas negras com os dizeres “R$ 4,40 não dá!” estendidas diante dos policiais, spray de pimenta usados pela polícia para a dispersão, atos de vandalismo, ativistas detidos e levados a distritos policiais...

Mas... nada de imagens aéreas ao vivo e extensivas sobre os protestos, nada de a Globo sacrificar comercialmente seu horário nobre para transmitir protestos aos vivos, nada de black blocs fazendo poses épicas e gestos desafiadores para cinegrafistas e fotógrafos. Apenas coberturas jornalísticas resumidas, sem sonoras, reportagens burocráticas e protocolares. E muito menos, matérias com estimativas da PM e do MPL sobre o número de participantes... Nada parecido com um passado recente no qual o MPL produzia manchetes, estava no centro dos holofotes da política e da mídia, produzindo fotos e vídeos icônicos circulando no Facebook e Twitter.

Parece que o MPL (fundado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2005) voltou à sua condição inicial, desconhecida para a maioria dos brasileiros, capaz de mobilizar algumas dezenas de pessoas para causar apenas aborrecimentos no trânsito e ser ignorada pela grande imprensa. 

Os sociólogos e cientistas políticos de plantão em junho de 2013, quando o MPL e os protestos contra o aumentos das tarifas levaram 100 mil pessoas para as ruas de São Paulo na noite do dia 13 (com violenta repressão policial), falavam em “crise de representatividade dos políticos”, “aumento da percepção da corrupção” e de um governo que não conseguia oferecer serviços públicos de qualidade para a população como educação, transporte e saúde. 

Por isso, comemoravam o “novo” na política e que “a classe política deveria aprender a lição”.

Ao que consta, as questões apontadas em 2013 não só permanecem como pioraram, somadas ao desemprego e depressão econômica. Então, o que mudou? Por que então tudo o que vemos são imagens melancólicas dos atos do MPL nas quais ironicamente vemos mais policiais com escudos do que manifestantes? Por que, apesar de tudo, a conjuntura atual não é mais aquela do “barril de pólvora” (como analistas da época descreviam) à espera da “centelha” em que se transformou a primeira semana de junho daquele ano, na qual um obscuro grupo de estudantes universitários acendeu o rastilho que fez explodir o País?

“Democracia vibrante”

Por que? Alguns analistas políticos falam algo sobre “ressaca política”, depois tanta turbulência e polarização que chegou ao grau máximo em 2018, rachando o País ao ponto de relações familiares, conjugais e de amizades ficarem muitas vezes irremediavelmente estremecidas. Ninguém parece mais querer falar em política, protestos ou atos... cansou!

Até as “Jornadas de Junho de 2013”, os únicos protestos comparáveis na história brasileira tinham sido os de até então 21 anos atrás – as manifestações de 1992-93 pedindo o impeachment do então presidente Fernando Collor.

Em termos de opinião local e internacional, o País era celebrado até aquele momento como uma história de sucesso - uma democracia vibrante, uma economia latino-americana que crescia a taxas semelhantes às da China, além de ser o "B" no BRICS. 

De que maneira essa conjuntura se transformou de repente num barril de pólvora à espera do fogo do rastilho que transformasse o Brasil em sinônimo de disfunção, instabilidade e crise sistêmica econômica e moral?

Cientistas sociais no futuro ainda detalharão e documentarão os eventos daquele ano que... deu no que deu. Acompanhamos diariamente as manchetes: cada notícia, em última instância, tem uma relação causal com aquele ano de 2013 – até mesmo o inacreditável vídeo-plágio-nazi-Goebbles do demitido secretário da cultura Roberto Alvim.

Revisitando aquelas jornadas, principalmente pelo ponto de vista de jornalistas e pesquisadores estrangeiros que cobriram os eventos, podemos reunir aqui e ali indícios, sincronismos, coincidências que apontam para uma cadeia de eventos produzida, provocada, incitada ou plantada – o conceito militar de “guerra híbrida”, na época considerada apenas uma “teoria conspiratória”. 

Mas hoje, admitida com atraso por cientistas sociais à esquerda como, por exemplo, Jessé de Souza com o lançamento em março do livro “A Guerra Contra o Brasil”.   

Revisitando a “Primavera Tropical” 

Vamos ver alguns desses indícios.

“Foi uma surpresa...  Estamos há oito anos nisso. Este ano esperávamos mobilizações... mas não 100 mil pessoas nas ruas!”, disse Douglas Belome, ativista do MPL, ao repórter da agência de notícias Reuters, Asher Levine, em junho de 2013. Em artigo pela Reuters, o jornalista compartilhava essa surpresa: “o Brasil não teve um histórico recente de protestos políticos e vem de um histórico boom econômico na última década” – clique aqui.

A reportagem de Asher descrevia como a surpresa dos ativistas do MPL tinha uma relação direta com a gradativa perda do papel de liderança do Movimento depois de quatro manifestações naquele mês.

“Vinegar Protests” (“Protestos do Vinagre”) “Tropical Springs Brazil Protests” (“Primavera Tropical Brasileira”), “Jornadas de Junho”, não importava o nome: enquanto a imprensa internacional reportava tudo com espanto e curiosidade, aqui, a partir de um determinado momento, a grande mídia criou uma narrativa de que tudo era natural. Uma decorrência previsível depois dos anos de escândalo do mensalão e de corrupção que supostamente carcomia a qualidade dos serviços públicos.

A chegada dos “Não-ativistas”

Naquele ano o jornalista Vincent Bevins cobria os acontecimentos como correspondente do Los Angeles Times. Nas manifestações de 17 de junho, Bevins começou a perceber uma mudança no tom dos protestos: não-ativistas estavam começando a aparecer:
Cobri a primeira manifestação em que não-ativistas começaram a aparecer. Quando a marcha se aproximou da famosa ponte Octávio Frias de Oliveira, em São Paulo, uma discussão eclodiu na minha frente. De um lado, quatro ou cinco jovens punks magrelos e politicamente articulados, vestindo vermelho e preto; do outro, um grupo de recém-chegados agitando a bandeira do Brasil. Os punks disseram aos recém-chegados que a bandeira não passava de um símbolo nacionalista vazio e que, se não fizessem nenhuma exigência específica ao governo, sua postura poderia facilmente deslizar para o fascismo. (...) Os manifestantes acreditavam que os recém-chegados não tinham uma mensagem real - apenas acenar a bandeira era semelhante a não protestar, ou talvez ainda pior, sentiam os punks. Eles acreditavam que ali era o lugar para darem uma lição sobre a bandeira, aparentemente com um didático espírito de solidariedade; os recém-chegados, em resposta, disseram aos punks para calarem a boca - Eu testemunhei essa cena por acaso, mas outros participantes relataram ter presenciado tensões semelhantes em toda a cidade - clique aqui.
Para Vincent Bevins, progressivamente os confrontos entre “não-ativistas” e o MPL começaram a se repetir. Como no dia 21 de junho quando, na Avenida Paulista, presenciou manifestantes corpulentos expulsando violentamente jovens esquerdistas que compunham grande parte das marchas originais. “Os homens gritavam ‘Sem partidos! Sem partidos!’... Eles insistiam que suas demandas não eram nem de esquerda nem de direita – eram simplesmente brasileiros”.

Sincronicamente, nesse momento a grande mídia deu uma violenta guinada na interpretação dos acontecimentos quando esses novos manifestantes (“não-ativistas”) entraram na briga.

Depois dos primeiros dias em que foi pega de surpresa e passou a acusar os primeiros atos como “carnaval de vandalismo”, “crime” e “burrice política” (Arnaldo Jabor, por exemplo, acusava de “ignorância misturada com rancor”), simultaneamente à presença dos “não-manifestantes” que passaram a dominar o ritmo das marchas, a TV Globo passou a compará-los aos “caras-pintadas” do impeachment de Collor. 
Começou a convidar os espectadores a enviar seus melhores vídeos sobre os protestos e a caprichar nos enquadramentos de forte carga retórica - torre da FIESP na avenida Paulista iluminada em verde e amarelo diante de um mar de faixas e cartazes. 

Um cinegrafista enquadrava uma criança que dava flores para cada manifestante que passava na avenida Faria Lima.... Nada parecido com a atual cobertura protocolar dos protestos contra o aumento das tarifas.

Cenas de depredação e incêndios provocadas claramente por truculentos agitadores sempre mostrados em tomadas aéreas por helicópteros para dar um impacto ainda maior de caos e anomia, emendadas por comentários sobre perda do controle federal, repercussão internacional das manifestações, aumento do dólar e assim por diante em um delirante discurso metonímico.

A geografia das redes sociais

“Não é apenas pelos 20 centavos! Muda Brasil!”. Quando o criador e CEO do Facebook, Mark Zuckenberg, postou em seu perfil essa mensagem de apoio às manifestações brasileiras, ficou claro naquele momento que algo mais estava em jogo, além do Facebook e do Twitter serem consideradas as principais ferramentas nas mobilizações das ruas – clique aqui.

O artigo dos pesquisadores Marco Basto, Raquel Recuero e Gabriela Zago, “A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil”, apresenta os resultados de uma investigação empírica sobre a relação entre a localização geográfica dos manifestantes (por hashtag, geolocalização e perfil) que participaram das marchas de protestos de 2013 no Brasil e a localização geográfica dos usuários que tuitaram os protestos.

Uma das evidências encontradas foi de que os usuários que postavam os protestos nas redes sociais estavam geograficamente distantes dos protestos nas ruas e que usuários de áreas geograficamente isoladas nas hashtags do Twitter para participar remotamente das manifestações.

As principais conclusões deste estudo oferecem uma contribuição valiosa para o debate sobre o ativismo da mídia e podem ser resumidas em duas conclusões. Em primeiro lugar, a geografia dos protestos nas ruas é consideravelmente distante da geografia dos usuários que twittam os protestos (distância de 768, 912, 930 quilômetros da localização dos fluxos de atividades de hashtag, perfil ou geocódigo, respectivamente). De fato, as análises relatadas neste estudo fornecem evidências empíricas de que as geografias do ativismo político on-line e no local são em grande parte diferentes. Esses resultados apoiam e ampliam as descobertas (...) de que a proximidade geográfica teve um impacto mínimo sobre o que os usuários se comunicavam. Os resultados também destacam que a mídia coloca mais ênfase no contexto político nacional do que na localidade real em que os usuários twittaram suas mensagens (BASTOS, Marco; RECUERO, Raquel; ZAGO, Gabriela, “A Spatial Analysis of the Vinegar Protests in Brazil", First Monday Journal, N. 3, March, 2014).

As redes sociais foram menos “ferramentas de mobilização” ao estilo flash mobs. Os protestos foram remotamente repercutidos para criar uma ênfase nacional, reforçando a narrativa que estava em andamento pela grande mídia. Muito mais uma estratégia elaborada de “agenda setting” do que parte de uma “manifestação horizontal e organizada através das redes sociais”, narrativa predileta da grande mídia para criar a mitologia da “espontaneidade” dos protestos.

Fez parte da estratégia de propaganda dessa guerra híbrida criar a narrativa das “manifestações horizontais, sem lideranças, convocadas espontaneamente através das redes sociais” – esse foi o script de todas as “primaveras coloridas” ao redor do mundo, dos países árabes a Hong Kong. 

Como demonstram os dados empíricos da análise espacial da geografia dos protestos de 2013 nas redes sociais, a principal função dessa estratégia digital foi nacionalizar as manifestações locais – colocar as demandas locais dos transportes públicos firmemente na agenda política nacional para abrir espaço às demandas mais agressivas contra o governo federal.

Dessa maneira, até o final de junho o MPL perdeu amplamente o controle das manifestações que passaram a ter um forte appeal de classe média, anti-esquerda. 

Em resposta, tentou-se um movimento coordenado da esquerda para recuperar a liderança do movimento, incluindo uma declaração do MPL de que não mais convocaria para as manifestações de rua diante do sucesso em impedir o reajuste das tarifas do transporte público.

Mas já era tarde. A grande mídia queria líderes para falar pelos manifestantes. E jovens de novos movimentos que vieram na esteira das redes sociais, como o Movimento Brasil Livre (MBL) lhes forneceu exatamente isso.

Muitos acreditam que os manifestantes de junho de 2013 tiveram as melhores intenções possíveis. Em uma entrevista coletiva no dia 20 de junho, três manifestantes do MPL, exaustos, em uma sala ocupada pela mídia nacional e internacional, confessaram: “ainda não tivemos tempo para digerir tudo isso, tudo o que sabemos é que estamos felizes”.

“Atualmente, os protestos que ocorrem não articulam uma visão para uma sociedade melhor. São apenas pedidos de ajuda. Estamos sofrendo uma surra todos os dias ”, diz Carolinne Luck, natural do Rio de Janeiro e que participou das primeiras manifestações de 2013. "Para ser sincera, não tenho ideia se o que fizemos naquele ano ajudou ou prejudicou o país".

Mas uma coisa é certa: 2013 foi o ano em que o Brasil tirou o diabo para dançar!

Com informações de Atlantic, Reuters, BrasilWire, Americas Quartely, First Monday Journal.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O Patriot Act Tabajara


Ataque ao "Porta dos Fundos": canastrice, false flags e psi-zumbis

Cinegnose - Wilson Roberto Vieira Ferreira
Sim... nós também temos terroristas! Mas não importa se estão em vídeos mal produzidos ou dirigidos, falando um espanhol com sotaque carioca ou mesmo um português macarrônico, e soltando palavras-clichê como “burguês” ou “revolucionário” a cada cinco segundos. Dizem representar “Comandos” ou “Sociedades” cujos nomes fariam rolar de rir os integrantes do grupo de humor Monty Python. Bem-vindo ao mundo das false flags Tabajara, terroristas canastríssimos de segunda mão em vídeos toscos, como o da “Frente Integralista Brasileira” que reivindicou a autoria do ataque à produtora do Porta dos Fundos. O que é mais engraçado? O vídeo “terrorista” ou um esquete do Porta dos Fundos?  Clamam por uma ação da Justiça contra um “atentado terrorista”, cuja prova é uma “false flag” tosca e mal produzida. Então o que há de real e mais preocupante nesse não-acontecimento? Certamente o vídeo deve ter vindo das insondáveis profundezas da Deep Web. Mas não de Integralistas. Mas de “Incels” (Celibatários Involuntários), Hominis Sanctus ou de algum tipo de supremacismo branco e hetero ressentido – o farto exército industrial de reserva psi-zumbi pronto para servir ao primeiro cripto-comando de um Estado Policial que busca o pretexto para impor o “Patriot Act Tabajara”.
Este Cinegnose vem ao longo desses dez anos insistindo na tese de que as diferenças entre ficção e realidade cada vez mais estão se perdendo – enquanto a ficção torna-se cada vez mais “realista” (ou hiper-realista com a evolução dos recursos tecnológicos), a realidade tende a querer emular essa realidade ficcional. 

Por isso a realidade tende a se tornar cada vez mais “canastrona”: over, estereotipada, saturada. E o mais sério: a credibilidade ou verossimilhança de um evento estará na relação direta da semelhança com as imagens ficcionais.

A coisa fica ainda mais séria quando essa, por assim dizer, “ontologia invertida” começa a entrar no campo da Política. O velho paradigma hipodérmico da propaganda política começa a dar lugar a uma sofisticada engenharia de percepção para tornar críveis false flags ou inside Jobs que se tornam pautas sérias para agenda midiáticas.

O 11 de setembro foi o (pseudo) evento inaugural da ação política através de armas não-convencionais (guerra híbrida, bombas semióticas etc.) – trazer para a realidade a recorrente destruição de Nova York, recorrente na indústria do entretenimento daquele país desde a transmissão radiofônica de “Guerra dos Mundos”, de 1938.

Esse não-acontecimento justificou o “USA Patriot Act” de George Bush, paradigma para o século XXI, onde sem qualquer autorização da Justiça (seja dos EUA ou de outros países) órgãos de segurança e inteligência dos EUA poderão invadir a privacidade de qualquer um suspeito de conexões com “práticas terroristas” – conceito tão elástico quanto se queira.

Outro exemplo? A célebre Guerra Fria, glamourizada dos filmes de James Bond às incursões de Rambo no Afeganistão cenográfico dos anos 1980, é requentada num “conflito cibernético” que poderá interferir nas eleições americanas de 2020 – quando sabemos que as fábricas de memes e fake news que que beneficiaram Trump foi tudo, menos exclusividade dos RAVs (Russos, Árabes e vilões em geral) hollywoodianos – clique aqui. 

 E... sim, nós também temos terroristas! Pelo menos é o que vem sendo ensaiado no Brasil, logo imediatamente após do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
O evento-encenação da "célula-amadora" dos terroristas com armas de paintball
Com um ministro Raul Jungman vestido de colete de campanha e “papagaios de pirata” para as câmeras com roupas de camuflagem e o ministro do STF Alexandre Moraes grave e gaguejante, anunciando a poucos dias dos Jogos Olímpicos a existência de uma “célula amadora” islâmica no Brasil – a “verdade” comprovada com fotos do terrorista que, na verdade, tinha uma arma de paintball – clique aqui.

Desde então é recorrente o controle da agenda midiática para pautar o discurso da ameaça terrorista como ensaio para o fechamento político, através do estímulo de um cenário progressivo de confrontação.

O vídeo que apenas foi visto no Brasil sobre a FARC ameaçando Bolsonaro (num sofrível espanhol com sotaque carioca...), a matéria da revista Veja de julho desse ano o líder terrorista da Sociedade Secreta Silvestre (SSS) revelava planos para matar Bolsonaro (terrorista que anuncia seus planos “secretos”...), claro, numa entrevista direta das profundezas irrastreáveis da Deep Web... 

... e agora um revival do vídeo de um grupo com o inacreditável nome de “Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira”, reivindicando a autoria do ataque a bombas caseiras contra a produtora do grupo Porta dos Fundos – supostamente, um grupo inconformado com o especial de Natal do grupo de humor “A Primeira Tentação de Cristo”, figurando um Jesus gay.

Porém, o mais inacreditável nem foi o atentado com bombas incendiárias, mas levar à sério um vídeo mal produzido e canastríssimo como evidência de “atentado terrorista”.

A melhor descrição desse vídeo talvez venha da ironia do escritor Antonio Prata: 
“Sei que é ingenuidade minha, mas ainda aguardo a revelação de que o atentado do Porta dos Fundos era uma piada deles mesmos só para lança a piada mor: o vídeo dos integralistas carioquistas sotaquistas de neopentecostalistas avec monty python no úrtimo”.
Dentro do contexto político atual de um governo que deliberadamente está buscando a confrontação para criar seu próprio Patriot Act, por meio da estratégia de saturação na pauta midiática da figura do terrorista (inédita por essas plagas), é impossível não considerar esse vídeo uma false flag, um “não-acontecimento”. 

Porém tosco, mal dirigido e produzido e que não consegue chegar ao nível dos vídeos false flags das execuções do Estado Islâmico produzidos em 2015 por empresas terceirizadas do Pentágono e da CIA.

O vídeo tosco

De tão tosco e infantil, certamente o vídeo deve ter vindo das insondáveis profundezas da Deep Web. Mas não de Integralistas que tentam manter os ideais de Plínio Salgado. Mas de “Incels” (Celibatários Involuntários), Hominis Sanctus, PUAs (Pickup Artists) ou de algum tipo de supremacismo branco e hetero ressentido – o farto exército industrial de reserva psíquico zumbi pronto para servir ao primeiro cripto-comando de um Estado Policial – voltaremos a esse ponto adiante.

Primeiro, é uma paródia over de todos os vídeos da Al Qaeda, ISIS, Estado Islâmico etc. Algo assim como o roqueiro Supla ser uma paródia de Billy Idol que, por sua vez, já era nos anos 80 uma caricatura de Sid Vicious do punk dos anos 70... O vídeo é uma cópia da cópia da cópia... até virar uma nota de três reais.

Mal produzido: a bandeira (Brasil do Império!) e as roupas parecem que foram tiradas naquele instante de alguma arara ou guarda-roupa cenográfico – não estão surradas ou usadas como se presa de um grupo clandestino com intensa atividade terrorista. E ainda mal-ajambradas e com péssimo caimento sobre o corpo dos “atores” – parece algum vídeo feito nas coxas no quarto da casa de um dos “atores”, enquanto a mãe impaciente grita chamando todos para o almoço...

O discurso ambíguo: a cada cinco segundos o sujeito fala “burguês”, “popular” e “revolucionário”, sugerindo um discurso de esquerda. Mas a pauta é de direita: defesa da família, “contra a atitude antipatriótica, blasfema do grupo de militantes marxistas do Porta dos Fundos”.

Efeito Firehose

Na mosca! O vídeo dá munição tanto à direita quanto à esquerda para se acusarem mutuamente sobre a natureza fake do vídeo e do próprio “atentado” – só poderia ter sido armação de um dos lados... 

Para criar a espiral especulativa numa mídia saturada pelo chamado “efeito firehose”: a estratégia de fabricar diariamente boatos, para depois serem negados pela checagem, fazendo com que a realidade se torne subjetiva. A ideia é justamente criar uma espiral incontrolável de interpretações de tal forma que faça a opinião pública não acreditar em fato algum.

Do ponto de vista discursivo é um pastiche total: qual o significado da bandeira monarquista com o símbolo do Integralismo ao fundo? Jamais a vertente brasileira do fascismo foi monarquista. O texto lido pelo soturno porta-voz parece um trem descarrilhando, numa verborragia que em segundos muda o tom: do neopentecostalismo, para a acusação contra a “mega-corporação bilionária” Netflix que “quer roubar nossas riquezas” até conclamar ao levante de extrema-direita com acento miliciano.

"O Mandarim" assusta o Ocidente em uma false flag no "Homem de Ferro 3"

Mas por incrível que pareça a verossimilhança desse evidente vídeo forjado como tática false flag vem daquela inversão ontológica entre ficção e realidade: o que é mais real? O vídeo do “Mandarim” (no filme Homem de Ferro 3) feito por um ator medíocre e que é “vazado” para as cadeias de TV? Ou todos os vídeos do Estado Islâmico produzidos por terceirizadas do Pentágono?

Por isso a nossa “False Flag Tabajara” ser tão canastrona e farsesca como uma piada do grupo inglês de humor Monty Python – parece ainda reverberar no imaginário brasileiro a falsa entrevista do Gugu com um líder do PCC que prometia matar Datena e todo mundo. 

Soma-se a isso a estratégia de saturação por anos da guerra anti-terror nos telejornais com os vídeos canastrões que fazem apenas crianças se mijarem de medo. Então, temos o início da multiplicação de nomes hiperbólicos de grupos terroristas tupiniquins com seus discursos em português macarrônico: “Individualistas que Tendem ao Selvagem” (ITS), “Comando de Insurgência Popular Nacionalista...”. 

Lembrando a comédia Bananas (1971) na qual Woody Allen ironizava a multiplicação dos nomes bombásticos de grupelhos ativistas de esquerda em Nova York. 

Para além dessa questão percepto-cognitiva-sensorial que assola o distinto público que crê em qualquer coisa há duas questões sérias por trás desse vídeo canastro-tosco.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Lula joga um balde de água fria na guerra da comunicação

Cinegnose - Wilson Roberto Vieira Ferreira

Muito tem se falado do fenômeno global da ascensão do populismo de direita (Brexit, Trump, Bolsonaro, Zelenski etc.) através do domínio tecnológico das estratégias digitais – mineração de Big Data, fabricas de memes, fake news, deep fake etc. 

E, mais preocupante, o quanto os seus concorrentes à esquerda ou de centro insistem em se manterem analógicos, sem perceberem como as plataformas de mídias digitais se tornaram o novo espaço público da sociedade. Porém, dominado por ideias anti-iluministas ou anti-humanistas, pelo nacionalismo mais tosco, intolerante, alimentando um total desprezo até pela Ciência e o conhecimento.

A avaliação que a esquerda parece fazer de tudo isso lembra aquela estória do rei que matou o mensageiro que veio de uma terra distante com uma má notícia. Em outras palavras, ainda a simples menção da necessidade estratégica da esquerda compreender o que aconteceu nas redes sociais durante a eleição de 2018 para utiliza-las como meio efetivo para a transmissão de conteúdos progressistas, significaria “fazer o mesmo jogo rasteiro da direita”.

Porém, esta “novidade” na estratégia de comunicação do populismo de direita não é tão nova assim. Na verdade, essa suposta novidade já tem quase 70 anos. 

Todo o atual hype em torno da instrumentalização política das mídias digitais, redes sociais e mineração de big data como fosse uma grande novidade, nada mais faz do que amplificar tecnologicamente uma descoberta da sociologia da comunicação no pós-guerra do século XX: a revelação de que na circulação de informações na sociedade a influência social é mais decisiva do que a manipulação direta da propaganda transmitida pelos meios de comunicação de massas.

Divisor de águas na Comunicação

Esse verdadeiro divisor de águas no campo da Ciência da Comunicação veio através das pesquisas do sociólogo com especialização em matemática e métodos quantitativos, Paul Lazarsfeld (1901-1976).
Talvez a questão da comunicação para a esquerda seja um problema ainda mais sério: não se trata apenas de não ter compreendido um fenômeno supostamente novo e inesperado. Na verdade, há no mínimo 70 anos a esquerda vem ignorando aquele divisor de águas proposto por Lazarsfeld que mudou toda a compreensão da comunicação social. Desde a utilização revolucionária do rádio e do cinema pela propaganda nazifascista que culminou com a Segunda Guerra Mundial – voltaremos a esse ponto adiante.   

Toda essa reflexão que esse humilde blogueiro começa aqui a fazer foi originada por um verdadeiro balde de água fria jogado pela resposta de Lula dada em uma entrevista feita na redação do blog Nocaute, do jornalista Fernando Moraes – clique aqui.

Uma das participantes, Ana Roxo, perguntou se Lula e PT haviam entendido o que aconteceu nas redes sociais no Brasil durante as eleições de 2018. A resposta não poderia ter sido mais inquietante para um pesquisador em Comunicação: “Acho que o PT não tem que fazer o jogo rasteiro que eles fazem. Contra a raiva deles, precisamos vender sorrisos...”. 

E que a batalha da comunicação será vencida com a “democratização dos meios” e com o “apoio aos blogs sujos”.

E parece que está levando a sério essa tese de “vender sorrisos”: em vídeos aparece de chapéu Panamá, bronzeado e camiseta com gola em “V”, semblante feliz, conclamando: “em vez de nos escondermos em casa, temos que ir às ruas!” – semioticamente, há um incômoda dissonância entre a urgência da mensagem transmitida por um protagonista que inspira uma impressão inversa: tranquilidade, estabilidade e felicidade – clique aqui.

Enquanto, ao mesmo tempo, lança o livro organizado por Mauro Lopes “Lula e a Espiritualidade: oração, meditação e militância” com o mote de que “no coração de Lula pulsa a espiritualidade do povo brasileiro”.

Claro, um discurso de espiritualidade ecumênica ao gosto de convertidos (principalmente da “esquerda namastê”) e também motivadora para elevar o moral da militância – perdida desde que Lula foi levado preso do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC como prêmio pela Polícia Federal para, mais tarde, Bolsonaro reencarnar o fantasma da ditadura militar.

Onde direita e esquerda se encontram

Nesse ponto, o jornalista Ricardo Kotscho concorda: “num ponto direita e esquerda se encontram (...) em entrevistas e discursos, sem novidades, esquerda e direita se equivalem na mesmice de mensagens, falando para os já convertidos”.

Porém, se cada lado corresponde a um terço do eleitorado, segundo Kotscho, os outros 40% estão esquecidos e nem prestam mais a atenção. É a “maioria silenciosa que decide as eleições que bestificada assiste a esse diálogo de surdos”.

Mas Kotscho cai na mesma cilada de Lula ao falar que o problema de comunicação é de “conteúdo”: para se tornar digital, a esquerda teria que abrir mão de seus princípios e “partir para a baixaria, que é o que rende cliques e audiência na selva da Internet”. Para ele, seria impossível concorrer com o mesmo nível de baixaria de um Bolsonaro Salles, Damares, Weintraub e congêneres.

Depois de um ano da vitória de Bolsonaro por meio das falcatruas digitais já bem conhecidas e alvos de uma CPMI no Congresso, a esquerda continua ou negligenciando a questão da comunicação política ou recitando os velhos mantras conteudistas, sempre pensando como alvo da conquista de corações e mentes entidades abstratas como “povo”, “ruas”, etc., para as quais deve ser levada “alegria”  para se contrapor ao discurso de ódio da Internet.

A esquerda incorre em dois erros fundamentais:

(a) Matando o mensageiro: mídia digital é baixaria

Acreditar que as baixarias, atrocidades e o ódio incitado por memes, fakes news e deep fakes são intrínsecas às mídias digitais de convergência. Como se não fosse possível domar os algoritmos e fazê-los trabalharem a favor de outros valores ou ideologias. 

Exemplos vão desde os aplicativos desenhados exclusivamente para a campanha presidencial de Barack Obama em 2008 (em que a “usabilidade” – imediaticidade visual, controle intuitivo, simplificação de tarefas e clara definição de objetivos – passa a ser o principal quesito de um novo tipo de ativismo político – clique aqui) ou a proposta de um aplicativo de relacionamento para usuários de esquerda, o PTinder – ferramenta importante quando o próprio Lula admite naquela mesma entrevista ao Nocaute que “o PT não tem controle nem dos números de celular de seus milhões de afiliados e apoiadores”.

Esse Cinegnose vem há anos insistindo na ideia de que a esquerda deve lutar no mesmo campo simbólico da sociedade na qual a direita ganha por WO: o campo da produção simbólica digital.

(b) Tudo é novidade!

Mas há uma falácia de base na avaliação da esquerda sobre a comunicação e as mídias: a de que tudo o que aconteceu nas últimas eleições foram fatos absolutamente novos, decorrentes das sombrias aplicações dos insondáveis algoritmos que estão destruindo a democracia e a própria sociabilidade.
Na realidade, as atuais ferramentas de convergência midiática (dispositivos móveis, redes sociais, plataformas digitais etc.) apenas turbinam tecnologicamente uma descoberta no âmbito das ciências da comunicação que alterou definitivamente as estratégias de comunicação social – e é a base da atual engenharia social baseada em guerras híbridas: a descoberta do papel decisivo da influência social como fator que sanciona o conteúdo das mídias nas massas.

Os resultados das pesquisas empíricas sobre a recepção de rádio nos anos 1940-50 levaram Paul Lazarsfeld a romper com o paradigma da propaganda na comunicação – um suposto poder das mídias em doutrinar, manipular ou inculcar conteúdos pela mera exposição e repetição de conteúdos para os receptores dos meios de comunicação.

A maior contribuição de Lazarsfeld foi a descoberta do papel dos líderes de opinião na sociedade e suas influências junto as suas redes de relacionamentos: o conteúdo das mídias circularia pela sociedade em DUAS ETAPAS (“two-step-flow”): da mídia aos líderes e dos líderes a ampla maioria silenciosa e desatenta. À espera de que suas percepções sejam ativadas pela influência do líder para se tornar, então, opinião.

Em outras palavras: a mera exposição à propaganda não massifica conteúdos. É necessária a sanção dos líderes de opinião para que percepções se tornem opiniões e, mais tarde, decisões.

Por que viralização é diferente de massificação?

O que vemos hoje nas redes sociais e na mineração de big data é a potencialização dessa antiga descoberta – a diferença crucial entre massificação e viralização: enquanto a massificação implica em panfletagem, doutrinação ou irradiação de conteúdos de forma generalizada para toda a sociedade, a viralização significa modular os discursos para perfis definidos (os líderes de opinião ou “influenciadores digitais”) que certamente farão todo o trabalho do emissor – compartilhar na sua rede de relações.

E o que tudo isso significa para a esquerda? No balde de água fria jogado por Lula no blog Nocaute, parece estar implícita ainda a fé na massificação: da alegria, do otimismo, da espiritualidade, da militância e assim por diante, como meio para se contrapor ao discurso de ódio.

Discursos de ódio são virais. Não se combatem apenas com estratégias de massificação – chamar o povo às ruas, por exemplo.

Aliás, essas mobilizações só ocorrem pela decisiva influência social. Antes do PT e as esquerdas abandonarem as periferias para deixa-las sob a influência dos novos líderes de opiniões (os pastores neopentecostais), as Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica despenhavam esse papel decisivo durante o período da ditadura militar. 

Líderes comunitários sancionavam ou criticavam os conteúdos das mídias através das suas redes de influência. O que se tornou decisivo no papel de resistência e contrainformação diante da mídia hegemônica. 

Um exemplo prático disso está no documentário Esquinas Calientes: Geopolítica do Bairro Venezuelano (2019) realizado por Nacho Lemus, no qual é mostrada a chave de resistência do apoio popular ao governo de Maduro, apesar de tantos ataques da direita, crise de desabastecimento e fome. O que chama a atenção é o papel das CLAPs – Comitês Locais de Abastecimento e Produção – não só como canais alternativos de distribuição de alimentos e anti-bloqueios econômicos, mas também como canais de contrainformação – assista abaixo ao documentário.

O apoio ao governo não se deve a um culto ao presidente (massificação), mas um intenso trabalho de base na articulação de líderes sociais que influenciam suas redes de contatos - viralização.
Em síntese, por trás de todo esse fetichismo tecnológico (o hype do “novo” pelos insondáveis algoritmos), por trás da atual estratégia da extrema-direita em redes sociais jaz um simples e velho conceito que a esquerda jamais entendeu (ou não quer entender): o fator da influência social na comunicação.

Se a esquerda estiver realmente disposta de deixar de ser apenas jurídica-parlamentar e abandonar essa cantilena de “luta e resistência” que unicamente panfleta a bolha de convertidos, deverá articular toda a guerra semiótica em torno do conceito de “influência social” – seja pelas vias analógicas e ou digitais.

Reconquistar as redes sociais de influências, ora dominada pelos líderes comunitários neopentecostais nas periferias das grandes cidades. Que junto ao Estado policial rapidamente gestado por Moro e o Judiciário, nos faz caminhar céleres para a “República de Gileade” da série The Handmaid’s Tale (2017-) – o Estado teocrático cristão-militar fundamentalista.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Um fantasma ronda o País: a desconexão entre as palavras e as coisas


Mídia não dá nomes aos bois em Paraisópolis e reforça amnésia social

Cinegnose - Wilson Roberto Vieira Ferreira
Um fantasma ronda o País: a desconexão entre as palavras e as coisas. Aquilo que no começo desse século a coluna de humor de José Simão na “Folha” chamava de “tucanês” (inspirado na linguagem prolixa de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB) se hipertrofiou como discurso jornalístico e da própria mediação da realidade em um arco de vai das corporações a ONGs: eufemismos, neologismo, discursos indiretos, etc. O resultado é uma espécie de “amnésia social” na qual são denegados os três traumas que fundam essa nação: a escravidão, o golpe militar que instaurou a República e a ditadura militar de 1964 a 1985. As mortes na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, pela ação repressiva policial em outro estigmatizado “pancadão”, são recorrências do retorno do reprimido do inconsciente coletivo nacional. Para a mídia não há extrema direita, ditadura e reprodução da desigualdade. Há “conservadores”, “governo polêmico” e “desafios” a serem superados por “boas práticas”. Sem dar nomes aos bois, a grande mídia e o País estão condenados a viver no ciclo vicioso de depressões e crises de euforia. 
Ela é de família holandesa e morou muito tempo na Tanzânia. É amiga da minha esposa e trabalham na produção de uma panificadora orgânica. Outro dia, estavam limpando a cozinha ao final de mais uma fornada. Então, ela pegou uma embalagem de álcool e olhou para a marca que se chamava “Zulu”. Como uma pessoa que morou muito tempo no continente africano, o que chamou a atenção não foi só o nome, como também o ícone da marca: um desenho estilizado de uma negra africana.
Perplexa observou: “produto de limpeza... uma negra... africana! Como assim?”, tentando imaginar quais as relações de sentido entre álcool-produto de limpeza-negra africana. Ficou assustada com o racismo latente nessas conexões semióticas.

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Certa vez, quando meu filho tinha tão somente cinco anos, passávamos por um bairro nobre de São Paulo quando vimos a fachada de um restaurante cujo nome era “Senzala”. Também perplexo, ele observou: “Como pode um restaurante ter o nome de um lugar tão triste onde os escravos eram acorrentados e morriam?...”. 

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Na tarde de segunda-feira no canal fechado Globo News são apresentadas imagens gravadas por celulares de moradores da comunidade de Paraisópolis sobre a catastrófica ação policial em um baile funk na qual morreram nove jovens, segundo a polícia “pisoteados”. Todas as imagens e depoimentos indicavam uma deliberada ação letal da repressão policial. 

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Entra ao vivo a opinião de uma dirigente do Instituto Sou da Paz (ONG especializada em pesquisas e estatísticas sobre políticas públicas de segurança e prevenção da violência). Um discurso que exigia fazer uma análise “técnica” sobre a tragédia, destacando a necessidade de a polícia seguir “protocolos” de abordagem e com policiais “melhor preparados”.

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Um fantasma ronda esse País: a desconexão entre as palavras e as coisas. Há um grave problema semiótico de produção de sentido, de intransitividade entre signos e acontecimentos, discurso e História, cuja consequência é o esvaziamento de sentido, esquecimento. Ou, no sentido freudiano, denegação – mecanismo de defesa de negação da realidade contra algo que possa gerar dor ou sofrimento.

Um ícone de um produto de limpeza em “black face”, o nome fantasia de uma lanchonete remetendo à escravidão e morte de negros (imagina se o nome fosse “Auschwitz”...) e uma opinião anódina sobre o assassinato de jovens pobres da periferia que se divertiam em um baile funk, com um viés “técnico” que remete a “protocolos”: são sintomas de um sério problema coletivo do qual o País não consegue escapar. 

Incapaz de fazer um acerto de contas com o sua própria História devido a uma reprodução deliberada da amnésia social: a midiatização da realidade através dos grandes meios de comunicação que simplesmente não se interessam em dar nome aos bois ou ligar as palavras às coisas. Por meio de eufemismos, ilações, neologismos, discursos indiretos, neutralizações etc. denega uma realidade explosiva e dolorosa.

TEXTO COMPLETO AQUI

terça-feira, 11 de junho de 2019

Esperando por Glenn Greenwald: um réquiem para o jornalismo brasileiro


CINEGNOSE
O terremoto provocado pelo vazamento de conversas comprometedoras entre o então juiz Sérgio Moro e autoridades da Lava Jato e Polícia Federal está cercado de ironias. O site “Intercept Brasil”, do premiado jornalista Glenn Greenwald, revelou relações promíscuas de Moro ironicamente dias depois do caso do jornalista esportivo Mauro Naves no caso Neymar, outro caso de relações perigosas. Mas Greenwald não revelou apenas a imparcialidade da Justiça. Expôs internacionalmente o provincianismo e paralisia do jornalismo brasileiro – foi necessário um “gringo” para abalar a paz de cemitério mantida por jornalistas sabujos com rédeas e antolhos mantidos pelas “famiglias” de proprietários midiáticos. Agora, Greenwald tornou-se o “Senhor do Tempo”, com os prometidos vazamentos em conta-gotas, trazendo pânico para empresários, políticos e, porque não, para os promíscuos jornalistas que se lambuzaram por anos com os vazamentos das fontes na Justiça e Polícia Federal.
Num modorrento final de domingo (como de costume),  depois de uma entediante goleada do Brasil sobre o time de Honduras num amistoso, eis que a paz de cemitério brasileira é interrompida por um terremoto: o site Intercept Brasil colocou no ar as primeiras reportagens com base em enorme quantidade de arquivos provenientes de uma fonte anônima – uma série de dados vazados do Telegram apresentando conversas comprometedoras do então juiz Sérgio Moro com as autoridades da força tarefa da Lava Jato.

Comprometedoras, porque os chats revelam colaboração proibida de Moro com Deltan Dallagnol. Conversas privadas inéditas que revelam que o juiz fez muito mais do que julgar casos da Lava Jato – sugeriu que trocassem as fases da Lava Jato, cobrou agilidade nas operações, deu conselhos estratégicos, pistas informais de investigação, antecipou uma decisão sua aos procuradores, além de dar broncas como fosse um superior hierárquico dos procuradores e da Polícia Federal.

Segundo o premiado jornalista Glenn Greenwald, um dos fundadores do Intercept Brasil, o que foi publicado é apenas uma ínfima parte de um conjunto de arquivos (chats, áudio, vídeos etc.) ainda mais extenso do que o do caso Snowden. E certamente a sua declaração, de que a família Marinho é “sócia, agente e aliada de Moro e Lava Jato”, deve ter conhecimento de causa, tendo em vista a dimensão do que ainda vai ser revelado.

Crime cibernético?

E a Globo sentiu o golpe. Primeiro, no domingo, jogou a notícia do vazamento para o final do programa Fantástico, dando todo destaque ao escândalo Neymar.

E, no dia seguinte, elevou ao noticiário de rede nacional o caso do assassinato do ator Rafael Miguel e seus pais em São Paulo e o acidente de um ônibus de turismo na serra da Mantiqueira. Ocuparam em primeiro lugar nas escaladas dos telejornais, jogando o vazamento do Intercept para o final como apenas um caso de crime cibernético contra juiz e procuradores.

Foi, no mínimo, curioso e constrangedor ver o analista de política Gerson Camarotti na Globo News tecendo comentários sobre o assassinato do ator pelo pai possessivo da namorada...

Em todo esse terremoto político há diversas ironias. Primeiro, acontecer dias depois da suspensão do repórter esportivo Mauro Naves por promiscuidade com a fonte no caso Neymar. A carta aberta dos ex-advogados da modelo que denunciou agressão e estupro do jogador, revelou involuntariamente um modus operandi que não é um caso isolado – faz parte da promiscuidade estrutural do próprio jornalismo da emissora – clique aqui.

Segundo, de imediato a Globo reagiu com a narrativa do “crime informático” (em comunicado oficial do Telegram, a empresa ressalta que “não há nenhuma evidência de invasão hacker na ferramenta, clique aqui), acusando a maneira “ilegal” do vazamento. Como se a Globo, e o próprio então juiz Sérgio Moro, não tivessem usado e abusado dos mesmos dispositivos, seja no grampo das conversas entre Lula e a presidenta Dilma ou nos vazamentos ilegais diários das operações da Lava Jato no telejornalismo global. Ora, se o conteúdo é comprometedor, pouco importa a forma. Afinal, diziam, o País vivia um “momento excepcional”...

Sabujos empedernidos

Mas a terceira ironia é a mais série e preocupante, dessa vez para o próprio jornalismo brasileiro: toda a crise política começou, há mais de uma década, pela ação do Departamento de Estado dos EUA ao treinar quadros de juízes e procuradores brasileiros no combate à lavagem de dinheiro que, supostamente, alimentaria o terrorismo. Álibi para iniciar uma guerra híbrida que criou, entre outras coisas, manifestações de rua igualmente híbridas. Chegando ao ápice no impeachment de 2016.

E, agora, foi necessária outra “ação gringa” para iniciar algum movimento de transformação política em um cenário de verdadeira paz de cemitério – um jornalista norte-americano (premiado com o Prêmio Pulitzer pela reportagem sobre o programa de espionagem da NSA dos Estados Unidos em território brasileiro, em parceria com Edward Snowden) revela com provas toda estratégia para levar à prisão o líder das últimas eleições e mantê-lo em silêncio, deixando livre o caminho para Bolsonaro.

Greenwald revelou muito mais do que vazamentos que desmontam a farsa da suposta imparcialidade da Justiça. Revelou o provincianismo e imobilismo da imprensa brasileira, mantida sobre rédeas e antolhos colocados pelas tradicionais famílias de proprietários dos meios de comunicação como os Marinho, Civita ou Mesquita.

Jornalistas empedernidos (sabujos que se levam mais à sério do que seus próprios patrões) que, na forma, copiam todos os modismos, tendências e cacoetes da imprensa norte-americana (promovendo congressos de jornalismo investigativo, agências de “fact-checking”, teorizações sobre fake news, transparência etc.), mas sem nenhum conteúdo – presos aos seus terminais de computadores, celulares e redes sociais nada mais são do que “jornalistas sentados” nas redações transformadas em baias, sem mais faro para sair a campo e assumir riscos.

Jornalistas que confundem checagem com investigação.

Senhor do Tempo

Nesse tipo de jornalismo “hipster”, “furos” ou “investigação”  se tornam grifes de uma espécie de autoparódia na qual simulam “informar”, quando na verdade se tornam porta-vozes, relações públicas ou simplesmente correia de transmissão das supostas “fontes” – nos últimos anos, polícia federal, procuradores e juízes.

É sintomático que em um dos últimos Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Associação de Jornalismo Investigativo - sic (sempre com apoio patronal da Globo, Folha, Itaú, Nexo etc.), a principal atração tenha sido o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot – clique aqui.

O fato é que Glenn Greenwald tornou-se o Senhor do Tempo: promete liberar tudo o que tem em conta-gotas, espalhando o pânico entre políticos, empresários e, por que não, jornalistas.

Principalmente globais, dada a promiscuidade estrutural com que os sabujos colunistas, analistas e apresentadores fizeram por anos a tabelinha com a Lava Jato, procuradores, juízes e Polícia Federal – a cada condução coercitiva com policiais nas suas toucas ninjas e armas negras brilhantes, lá chegava antes a Globo, para ficar pronta, com um link ao vivo.

É claro que Greenwald encontrou o seu “Garganta Profunda” (como ficou conhecida a fonte dos jornalistas do Washington Post que, em 1974, vazou informações que levariam ao impeachment do presidente Nixon) e, como aquele do passado, sempre tem algum interesse para vazar qualquer informação potencialmente explosiva.

E motivos não faltam: a Lava Jato se tornou uma ameaça ao próprio STF, ainda mais com Moro como Ministro da Justiça e chefe da Polícia Federal – ameaça que se consolidou com o vazamento das informações da Receita Federal contra Gilmar Mendes e Dia Toffoli. Informações vazadas à imprensa por um fiscal ligado à Lava Jato.

Mas há uma diferença em relação à provinciana e paralisada imprensa brasileira: Greenwald aceita os riscos de ir contra o movimento de uma manada poderosa e perigosa.

E, como ensinou o mestre Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra. Quem pensa com unanimidade não precisa pensar”.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Na manhã da Globo, favela e previsão do tempo viram "matérias inspiradoras" pelas reformas

Todas as manhãs, os diversos “Bom Dia” (SP, Rio, Minas etc.) do telejornalismo local da Rede Globo desempenham uma função semiótica bem distinta dos telejornais de rede (JN, Hoje etc.) e da TV fechada. Nos telejornais de rede e GloboNews há uma repetição hipodérmica da expressão “Reforma da Previdência” (em torno de 20 a 30 vezes por hora) e más notícias econômicas como chantagem a uma categoria especial de telespectadores: os líderes de opinião. Enquanto nos telejornais locais a estratégia semiótica é outra: exibir “reportagens inspiradoras” e “boas notícias” para elevar a moral da patuleia desempregada, desalentada ou subempregada – “uberizada”. Diferente dos líderes de opinião, a massa dispersa e desatenta precisa ser motivada para elevar o moral no começo do dia.  Nesse esforço motivacional nada escapa. Nem a previsão do tempo ou o evento esportivo da “Taça das Favelas”.
Cinegnose

...o jornalismo global vem sistematicamente transformando imagens de filas de desempregados nas portas de empresas, os cortes na educação pública e as próprias manifestações de rua contra o “contingenciamento” em discurso de chantagem: Vejam isso! Se a reforma da Previdência não for aprovada será o caos!

Por isso, os telejornais de veiculação nacional partiram para a clássica técnica hipodérmica da repetição. Por exemplo, só na edição do JN de 30/05 repetiu-se a expressão “reforma da Previdência” 26 vezes. 

Pauta binária

Segundo a observação empírica do, por assim dizer, “DataCinegnose” desse humilde blogueiro, o canal fechado GloboNews (voltado principalmente aos líderes de opinião) repete a expressão “reforma da Previdência” de 20 a 30 vezes por hora!

Numa brutal estratégia binária, a pauta do jornalismo global está dividida entre “meganhagem” e terror/chantagem para defender as “reformas” – não só previdenciárias, mas também o “projeto anticrime" de Sérgio Moro.

Repetição e toscas interpretações de números de pesquisas. “A maioria dos brasileiros é a favor da Reforma da Previdência”, diz com um olhar sério William Bonner. Mas esconde do infográfico os números de que apenas 6% sabem do quê se trata a “Reforma da Previdência”.

Globo e a guerra criptografada

Muitos analistas ainda acreditam que a Globo perdeu a paciência com o clã Bolsonaro e partiu para guerra (principalmente, depois que deu espaço às manifestações de rua contra os cortes na educação em 15 de maio). Perde-se de vista como a emissora vem sistematicamente participando da guerra semiótica criptografada do Governo: produção em massa de dissonâncias para ocupar a pauta midiática, desviando a atenção da sistemática política de criação de terra arrasada.

Pelos seus interesses rentistas, a Globo fecha integralmente com a reforma da Previdência (a privatização da aposentadoria pelos bancos). No máximo, opõe-se à pauta de costumes e meio ambiente dos anti-ministros do capitão da reserva.

Leia a matéria completa AQUI

terça-feira, 23 de abril de 2019

Pior do que está fica, sim


Ele já presidia o país desde 2015. Pelo menos no campo da ficção, o que nesses tempos de midiatização da política (primeiro pelas mídias de massas, depois através das redes sociais), que se transformou num importante instrumento de guerra híbrida, a diferença realidade/ficção parece pouco importar.

Ao lançar-se como candidato à presidência, transformou sua inexperiência como ponto forte de campanha. Criou a imagem de si mesmo como um outsider que desafiava a “velha política”. Aos 41 anos, fez questão de demonstrar que não tinha conhecimento aprofundado sobre qualquer tema. Limitou-se à narrativa de ser o “novo”, o “diferente” e insistir na necessidade do combate à corrupção.

Nada prometeu, não fez comícios, fugiu de debates e não deu entrevistas. Usou principalmente redes sociais para atrair os votos dos mais jovens com vídeos divertidos.

Não, isso não foi no Brasil. Estamos falando sobre a vitória de Volodymyr Zelenskiy nas eleições presidenciais da Ucrânia nesse domingo (21). Ator e comediante, bateu no segundo turno o atual presidente Petro Poroshenko, depois de também vencê-lo no primeiro turno.

Zelenskiy se tornou famoso no país pela série televisiva Servo do Povo (Sluga Naroda, 2015-) sobre a história de um professor de ensino médio que acidentalmente se torna presidente depois que seu personagem faz um ardoroso discurso contra a política ucraniana e viraliza nas redes sociais. 

Detalhe: o canal de TV 1 + 1 (emissora do bilionário empresário Igor Kolomoyskyi e que francamente apoiou o comediante) começou a exibir a última temporada do Servo do Povo quatro dias antes das eleições ucranianas.

“Se não tem promessas, não tem decepção!”. Essa foi uma das frases memoráveis da campanha de Zelensky, claramente bebendo na fonte do niilismo político que atravessa um dos países mais pobres da Europa, com 45 milhões de habitantes.

Wilson Roberto Vieira Ferreira

Texto completo no Cinegnose

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Avise a esquerda: luta de classes existe, e está em Brumadinho e no CT do Flamengo



Cansada de tantas derrotas nos últimos tempos, a esquerda simplesmente comemora como fosse um gol a forma como a Globo detonou a ministra Damares Alves no quadro “Detetive Virtual” no Fantástico do último domingo. Uma detonação bem seletiva: enquanto a emissora demonstra toda sua indignação e fúria investigativa nas questões identitárias e de costumes (vide a caça aos abuso sexuais de João de Deus), as tragédias de Brumadinho e do incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo são encaixadas na narrativa “tragédia-emoção-homenagens” – com direito a Galvão Bueno narrando os nomes dos jovens atletas mortos... 

Depois de colocar Lula na prisão perpétua e por os militares no governo, agora o novo papel da Globo é varrer a luta de classes para debaixo do tapete – cônscia de que, a partir de agora, acidentes como esses e a tensão social tenderão a crescer sob o modelo econômico de extrativismo selvagem: vender commodities módicas como ferro, manganês e jovens jogadores. Tudo a baixo custo, no limite da irresponsabilidade. Enquanto isso, sem se ater à tática semiótica de dissonância posta em ação pela parceria Governo/Globo, a esquerda reage de forma reflexa a cada bravata “politicamente incorreta” e esquece da luta de classes.

Texto completo AQUI

domingo, 27 de janeiro de 2019

Como um deficiente cognitivo como Jair Bolsonaro torna-se presidente da república?

Rebaixamento dos padrões de inteligência da Revolução Industrial 4.0 criou Bolsonaro


No momento em que o presidente eleito Jair Bolsonaro saiu da sua zona de conforto e se expôs em cenários não controlados como o Fórum Econômico de Davos ou a tragédia humano-ambiental de Brumadinho/MG, revela-se a sua condição limítrofe, com sérias deficiências cognitivas. E diante de pesquisas de opinião cujos resultados se colocam contra as principais linhas da sua “plataforma de governo”, muitos questionaram: mas afinal, como ele foi eleito? Discurso fascista? Anti-petismo? Há um fator ainda não tematizado - as relações intrínsecas entre a chamada “alt-right” (direita alternativa) e as redes sociais não é um mero acaso ou oportunismo. Personagens como Bolsonaro ou Trump são produtos das tecnologias de convergência da Revolução Industrial 4.0. Tecnologias que criaram uma cultura de aplicativos e redes sociais estruturada na noção algorítmica de “Inteligência Artificial”, que consiste em rebaixar os padrões do que entendemos como “inteligência”, enquanto os usuários se tornam simples processadores de informação.

Em postagens anteriores, este humilde blogueiro vem apontando para a importância do fator da canastrice na política – acostumados com simulacros televisivos e fílmicos, a opinião pública veria nos candidatos canastrões, que emulam personagens ficcionais, políticos verossímeis ou críveis... por lembrarem personagens da ficção.  Trump e o reality show televisivo "O Aprendiz" ou Doria Jr. e o meme do “Rei do Camarote”. E as “mitagens” de Bolsonaro, iniciadas como um personagem bizarro de humor em programas como Pânico na TV ("as mitagens do Bolsonabo”) ou no quadro “O Povo Quer Saber” no CQC da Band seriam os exemplos mais atuais.

Mas o fenômeno da canastrice na política ainda está associado às mídias clássicas de massas como Cinema e TV.

Bolsonaro e a alt-right vão além disso: também são produtos das tecnologias de convergência da RI 4.0. Tecnologias que criaram uma cultura de aplicativos assentada sobre a noção dúbia de “inteligência artificial”. 

Rebaixamento dos padrões de inteligência

Dúbia, porque, para muitos pesquisadores, a noção de “inteligência” trabalhada pelos cientistas computacionais e designers de softwares e aplicativos pressupõe uma autoabdicação humana: rebaixar os padrões do que entendemos como “inteligência”, enquanto os usuários se tornam simples processadores de informação.

Por exemplo, segundo o engenheiro computacional Jaron Lanier, para acreditarmos que aplicativos e algoritmos são realmente “inteligentes” temos que obrigatoriamente reduzir os nossos padrões de inteligência humana – o exercício diário de tratar máquinas ou aplicativos, como por exemplo Waze ou Google Maps, como formas de inteligência reais. O que resulta num senso de realidade mais flexível.

Isso sem falar nos aplicativos de relacionamentos que reduzem as relações afetivas à probabilidade estatística. Chama-se isso de “inteligência emocional” – a capacidade de adaptação irrefletida em um ambiente como forma de sobrevivência emocional.

Inteligência coletiva, nuvem, algoritmo ou qualquer outro objeto cibernético é aceito como uma super-inteligência por que reduzimos os nossos padrões e expectativas sobre a inteligência. As pessoas se degradariam o tempo todo para fazerem os aplicativos parecerem espertos. 

Por exemplo, a ideia de amizade nas redes sociais é vulgarizada e reduzida. Uma pessoa se orgulha em dizer que possui milhares de amigos no Facebook. Essa afirmação só poderia ser verdadeira se a ideia de amizade for restrita. Ignora-se que a verdadeira amizade deve expor à estranheza inesperada do outro.

Talvez não seja mera coincidência ou determinismo tecnológico (Trump e Bolsonaro apenas teriam sido espertos em se aproveitar das mídias em ascensão no momento, assim como Goebbels se apropriou do cinema e rádio à sua época) essa relação íntima entre a atual direita alternativa e as redes sociais como locus privilegiado para a guerra semiótica.

Mais do que o discurso fascistoide, beligerante e que apela mais ao fígado do que à mente dos receptores, a normatização ou verossimilhança de uma figura tão limítrofe como Bolsonaro (achar “aceitável” o capitão da reserva, com explícitas limitações cognitivas, ser um candidato a chefe de Estado), está sincronizada a esse projeto hipertecnológico que consiste em rebaixar o conceito de “inteligência”.

Uma das consequências mais importantes da precarização do conceito de inteligência com a cultura dos aplicativos e das redes sociais é, principalmente, o rebaixamento das expectativas sobre o que seja um debate político ou de ideias. E a confusão entre uma importante categoria civilizatória: a distinção entre público e privado.
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O clã Bolsonaro apenas foi o meio para que o projeto neoliberal (ruim de voto em qualquer eleição democrática) passasse incólume numa campanha eleitoral sem debates. O vice General Mourão é o núcleo duro militar e racional que garantirá a permanência do projeto da pulverização de direitos e garantias sociais com as “reformas” visadas pela “Casa Grande” (banca financeira e grande mídia).

E Bolsonaro, assim como Trump e tantos outros tantos “líderes” que ainda virão pela cruzada internacional da nova direita populista nacionalista comandada pelo norte-americano Steve Bannon, foi apenas um avatar criado para surfar na cultura de redes sociais e aplicativos.

A precarização das noções de inteligência e política é o meio para hackear a Democracia. Enquanto no mundo real, fora das bolhas digitais, as políticas de controle e extermínio de garantias e direitos sociais e econômicos passam sem nenhum debate público e inteligente.
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