quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A democracia acabou e o pior ainda está por vir

O PIOR ESTÁ POR VIR

Polarização, teorias conspiratórias, ataques à imprensa – como uma democracia pode acabar

  
Em 31 de dezembro de 1999 demos uma festa. Um milênio se encerrava e um novo tinha início: era preciso comemorar, de preferência em algum local exótico. Nossa festa cumpria esse requisito. Seria realizada em Chobielin, no noroeste da Polônia, em um solar que meu marido e os pais dele haviam comprado fazia uns dez anos, quando a propriedade era uma ruína cheia de mofo. Tínhamos reformado a casa aos poucos. Não estava pronta de todo em 1999, mas o telhado era novo. Também tinha um vasto salão recém-pintado e sem nenhuma mobília – perfeito para uma festa.

Os convidados eram variados. Havia amigos jornalistas de Londres e de Berlim, uns poucos diplomatas baseados em Varsóvia, dois amigos vindos de Nova York, mas os poloneses constituíam a maior parte: amigos nossos e colegas do meu marido, que à época era vice-ministro das Relações Exteriores do governo polonês. Também compareceram alguns jovens jornalistas poloneses – nenhum deles particularmente conhecido à época –, junto com uns poucos funcionários públicos e um ou dois integrantes do governo.

Dava para mais ou menos agrupar a maioria daquelas pessoas na categoria geral daquilo que os poloneses chamam de “direita”: os conservadores, os anticomunistas. Só que naquele momento da história também era possível qualificar a maioria deles como liberais – liberais pró-livre mercado ou liberais clássicos –, ou quem sabe como thatcheristas. Mesmo aqueles com uma posição pouco clara em matéria de economia certamente acreditavam em democracia, no estado de direito e numa Polônia que era país-membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e estava em vias de ingressar na União Europeia, parte integrante da Europa moderna. Nos anos 90, era isso o que significava estar “à direita”.

Como costuma acontecer com as festas, os preparativos foram um tanto quanto improvisados. Na Polônia rural dos anos 90, não havia como encomendar comes e bebes – minha sogra e eu preparamos travessas de beterrabas assadas e carne ensopada com legumes. Tampouco havia hotéis – os cento e tantos convidados se hospedaram em fazendas das redondezas ou em casas de amigos na cidadezinha mais perto. Fiz uma lista de quem ia ficar onde, mas ainda assim umas duas pessoas acabaram dormindo num sofá do porão. O som – cds de músicas gravadas numa época anterior ao Spotify – gerou a única cizânia cultural séria da noite: a trilha sonora da época de faculdade dos americanos não era a mesma dos polacos, de maneira que foi difícil fazer com que todo mundo dançasse ao mesmo tempo. A certa altura fui para o andar de cima: soube que Boris Ieltsin tinha renunciado e escrevi uma coluna sucinta para um jornal britânico. Desci e tomei mais uma taça de vinho. Lá pelas três da madrugada, uma convidada polonesa eufórica tirou uma pequena pistola da bolsa e disparou tiros de balas de festim.

Foi uma festa desse tipo. Varou a madrugada e continuou no brunch da tarde seguinte, impregnada do otimismo daquela época. Tínhamos reconstruído nossa casa. Nossos amigos estavam reconstruindo o país. Tenho uma recordação particularmente nítida de um passeio na neve – talvez tenha sido no dia anterior à festa, talvez no dia seguinte – com uma turma bilíngue: todo mundo conversando ao mesmo tempo, o inglês e o polonês se mesclando e ecoando pelo bosque de bétulas. Naquele momento, com a Polônia na iminência de se integrar ao Ocidente, tinha-se a impressão de que torcíamos todos pelo mesmo time. Concordávamos sobre a democracia, o caminho para a prosperidade, o rumo que as coisas estavam tomando.

Aquele momento passou. Decorridas quase duas décadas, cheguei a mudar de calçada para evitar algumas das pessoas que celebravam o ano 2000. Por sua vez, elas não só se recusavam a entrar na minha casa como tinham vergonha de admitir que um dia a frequentaram. Na verdade, cerca de metade dos convidados nunca mais falaria com a outra metade. Os estremecimentos são políticos, não pessoais. Hoje a Polônia é uma das sociedades mais polarizadas da Europa – uma grave cisão divide não só o que costumava ser a direita polonesa, mas também a tradicional direita húngara, a direita italiana e ainda, com certas diferenças, a direita britânica e a direita norte-americana.

Alguns dos convidados da véspera de Ano-Novo, assim como meu marido e eu, continuaram a apoiar a centro-direita pró-europeia, pró-estado de direito, pró-mercado, permanecendo em partidos políticos que, em certa medida, se alinhavam com os democratas-cristãos europeus, os partidos liberais da Alemanha e da Holanda e o Partido Republicano de John McCain. Outros tantos passaram a se considerar de centro-esquerda. Outros ainda acabaram por tomar um rumo diferente, apoiando um partido ultranacionalista chamado Lei e Justiça – que se afastara de modo impressionante das posições que tomava quando dirigiu o governo pela primeira vez por um breve período, de 2005 a 2007, e quando ocupou a Presidência de 2005 a 2010 (na Polônia não se trata da mesma coisa, pois o país é uma república parlamentarista).

Desde então o Lei e Justiça passou a adotar um novo conjunto de ideias, não apenas xenofóbicas e bastante arredias quanto ao resto da Europa, mas também francamente autoritárias. Depois que o partido conquistou uma ligeira maioria parlamentar em 2015, seus dirigentes violaram a Constituição ao nomear novos juízes para a corte constitucional. Mais tarde, seguiu um roteiro igualmente inconstitucional para tentar cooptar a Suprema Corte polonesa. Assumiu o controle da emissora de televisão pública, a Telewizja Polska, demitindo apresentadores prestigiados e passando a fazer propaganda descarada – eivada de mentiras facilmente refutáveis – à custa dos contribuintes. O governo granjeou notoriedade internacional ao aprovar uma lei que cerceava o debate público sobre o Holocausto. Ainda que a lei tenha sido alterada depois da pressão dos Estados Unidos, gozou de amplo apoio da base ideológica do Lei e Justiça – jornalistas, escritores e intelectuais, incluídos aí alguns de meus convidados, para os quais forças antipolonesas buscam culpar a Polônia por Auschwitz.

Posições dessa ordem me impedem de falar sobre o que quer que seja com alguns dos presentes à festa. Por exemplo, não tive uma única conversa com uma mulher que outrora era uma das minhas amigas mais íntimas, madrinha de um dos meus filhos – vou chamá-la de Marta –, desde um telefonema histérico em abril de 2010, alguns dias depois que um avião que transportava o então presidente caiu perto de Smolensk, na Rússia. Nos anos seguintes, Marta se aproximou de Jarosław Kaczyński, líder do Lei e Justiça e irmão gêmeo do falecido presidente. Regularmente ela o recebe para almoços em seu apartamento e discute quem ele deve nomear para seu gabinete. Há pouco tempo procurei encontrá-la em Varsóvia, mas ela se recusou; enviou-me uma mensagem assim: “Sobre o que conversaríamos?” – e não se manifestou mais.

Outra convidada – aquela que atirou no ar com a pistola – acabou por se separar do marido, um britânico. Soube que agora passa os dias na internet, provocadora em tempo integral, promovendo fanaticamente uma série de teorias conspiratórias, muitas delas de um antissemitismo virulento. Dispara tuítes sobre a responsabilidade dos judeus pelo Holocausto, e certa vez postou a imagem de uma pintura medieval inglesa que retratava um menino supostamente crucificado por judeus, com o seguinte comentário: “E ficaram surpresos por terem sido escorraçados…” Segue e engrandece os expoentes da “direita alternativa” (alt-right) norte-americana, cuja linguagem reproduz.

Soube que ambas estão estremecidas com os filhos devido a suas posições políticas. Mas isso também é típico: essa linha divisória percorre tanto famílias como amigos. Temos um vizinho perto de Chobielin cujos pais escutam a Radio Maryja, uma emissora pró-governo. Repetem seus mantras, encampam seus inimigos. “Perdi minha mãe”, ouvi de meu vizinho: “Ela vive em outro mundo.”

Para ser transparente quanto a meus interesses e inclinações, devo esclarecer que sou alvo de parte desse pensamento conspiratório. Meu marido foi ministro da Defesa por um ano e meio, num governo de coalizão encabeçado pelo Lei e Justiça durante sua primeira e breve experiência de poder; posteriormente rompeu com o partido e durante sete anos foi ministro das Relações Exteriores em outro governo de coalizão, este encabeçado pelo partido de centro-direita Plataforma Cívica; nas eleições de 2015 ele não se candidatou. Como jornalista e mulher dele, nascida nos Estados Unidos, não passei despercebida à imprensa, mas depois que o Lei e Justiça venceu as eleições daquele ano figurei em matérias de capa de duas revistas pró-regime, wSieci e Do Rzeczy (ex-amigos nossos trabalhavam em ambas), como coordenadora judia clandestina da imprensa internacional e articuladora secreta da cobertura jornalística negativa da Polônia. Matérias similares foram veiculadas no noticiário noturno da Telewizja Polska. Por fim pararam de escrever a meu respeito: a cobertura jornalística negativa da Polônia pela imprensa internacional ficou generalizada demais para que uma só pessoa, mesmo judia, a coordenasse na íntegra – se bem que de vez em quando o assunto ressurja nas mídias sociais, como seria de se esperar.


Num célebre diário que manteve de 1935 a 1944, o escritor romeno Mihail Sebastian relatou uma mudança ainda mais extrema em seu país. Assim como eu, Sebastian era judeu e a maioria de seus amigos era de direita. No diário ele anotou como, um por um, eles foram atraídos pela ideologia fascista, tal um bando de mariposas em direção à luz. Relatou a convicção e a arrogância de que se imbuíam ao deixar de se identificarem como europeus – admiravam Proust, viajavam para Paris – e passarem a se qualificar como romenos de sangue e solo. Reparou que descambavam para o pensamento conspiratório ou se tornavam irrefletidamente rudes. Gente que ele conhecia fazia anos o insultava abertamente e depois se portava como se nada tivesse acontecido. “Será possível”, ele se perguntava em 1937, “manter amizade com pessoas que compartilham uma série de ideias e percepções incompatíveis com as minhas – tão incompatíveis que se calam de vergonha e constrangimento assim que entro no recinto?”

Não estamos em 1937. Entretanto, hoje vem ocorrendo transfiguração semelhante na Europa em que habito e na Polônia, um país cuja cidadania obtive. E vem ocorrendo sem a desculpa de uma crise econômica como aquela que a Europa sofreu nos anos 30. A economia polonesa tem sido a mais consistentemente bem-sucedida da Europa ao longo do último quarto de século. Mesmo depois do colapso financeiro global de 2008, o país não passou por nenhuma recessão. A onda de refugiados que tem atingido outros países europeus não se fez sentir por aqui. Na Polônia não existem campos de migrantes nem há terrorismo islâmico ou terrorismo de qualquer gênero.

E o mais importante: muito embora as pessoas que descrevo, os ideólogos ultranacionalistas, talvez não sejam todas tão bem-sucedidas quanto gostariam, não são gente pobre nem do meio rural, nem são de modo algum vítimas da transição política, tampouco constituem uma subclasse empobrecida. Ao contrário, são instruídas, falam diversas línguas e viajam para fora – assim como os amigos de Sebastian nos anos 30.

O que terá causado essa transfiguração? Alguns de nossos amigos teriam sempre sido autoritários enrustidos? Ou será que a turma com a qual brindamos os primeiros minutos do novo milênio teria mudado ao longo das duas décadas subsequentes? Minha resposta é complicada, pois creio que a explicação seja universal. Dadas as devidas circunstâncias, qualquer sociedade pode se voltar contra a democracia. Aliás, a julgar pela história, todas as sociedades acabarão por fazê-lo.

Texto completo na Revista Piauí

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